Aurora
Foi ontem. Parece-me confortável, ao menos, pensar que foi ontem.
Começou pela manhã, abaixo dos joelhos.
É possível ter um buraco nos joelhos? Falo metaforicamente.
Ora! Evidentemente. Mas se é metáfora, não é buraco. E o que eu sentia era real.
Acalmei-me. Passaria.
Mas depois do almoço já subira pelas pernas e tomara o baixo ventre. Às quinze, o pulmão, coração, traqueia.
Devia ter procurado ajuda...
Quando o sol se pôs era eu inteiro dentro do buraco, um buraco-amplitude.
Foi quando, tardiamente, ousei perguntar: "Quem és? O que és?".
Silêncio de mil florestas noturnas.
Não havia mais o que fazer. Agora, era seguir o restante do existir no buraco, um buraco-essência.
O estranho é que depois de assumi-lo, o buraco-universal, posso, enfim, pensar melhor. E formulo frases até pertinentes... “Dada a condição-buraco, qual o sentido da vida?”; “Se viver é o mesmo que estar-no-buraco, qual é, propriamente, a felicidade possível?”.
Ocorre que não posso confiar. Como dar crédito a uma resposta que venha de alguém que se tornou, ele mesmo, buraco?
Não posso sequer afirmar que, de fato, já houve algum momento em que o buraco não era.
A manhã, os joelhos, a noite, a floresta... E se forem apenas imagens que me vêm em razão de eu ter, finalmente, encontrado meu modo de ser no buraco?
Mas preciso dar ordem às coisas, nomeá-las. É o único jeito de suportar a asfixia esburacante que me toma.
Darei algum nome a ele, o buraco, por limitado que seja. Vazio Eterno, Totalidade, Mundo Vasto...
E darei ordem às imagens que me vêm. Vou tomá-las por reais, a vida por real, eu mesmo por real, existindo.
Não vou mais recordar o dia de ontem, do qual não tenho, sequer, certeza de que existiu.
O sol desponta.
Vou fazer café! E seguirei adiante.