P.V.C. ** Crônica de uma vida

Entre monólogo, divagações e cogitos...

Uma conversa comigo mesmo...

Pondero sobre a minha vida em diferentes versões ao longo dos anos vividos. Bem ou mal. Com direito a própria divisão, divido ela em dois momentos para produção deste ‘post’: dos momentos iniciais preservados nas minhas memórias até o momento em que me afasto do RS e parto para uma nova fase em que tudo muda, profissão, formação, vida relacional e, até, o que sempre pensei sobre ser vida. Mudanças sempre ocorrem. Algumas mais intensas, outras amenas. Todas, contingenciais.

Aqui, neste momento, quero evocar e trazer à tona (para mim, como forma de registro) os momentos que se constituem a primeira parte, relacionados com a transição etária que me motiva ou incita. A segunda fase, pretendo, construir paulatinamente na medida em que novas experiências sucedem. Explico, a quem interessar, durante o texto.

A quem tiver a coragem de me ler, boa leitura e ensejo que alguns eventos relatados façam refletir, pensar, julgar... enfim.

Por onde começo?

Não importa muito por onde, afinal, entre possíveis leitores, eu sou o destinatário principal. É uma das muitas ideias que alimento sem adequadamente digerir para transformar em ação e escrever: Monólogos. Ou, conversas comigo mesmo.

O tema é a idade e seus rastros. O título sugere algo hilário, mas igualmente sério para quem pensa sobre a vida, a idade, o que se passa, enfim... – por que estamos mesmo por aqui? Se a curiosidade sobre o título aguçar muito, pule para o final e observe os ‘**’. Depois te deixo ir...

Dizem que a gratidão é a melhor oração. Não sei. Nunca pensei sério nessa questão. Mas tenho o hábito de agradecer todo dia e o dia todo por tudo que acontece comigo. De bom e de ruim. Creio na máxima de que tudo que nos ocorre oferece situações de aprendizagem ou mesmo reflexões sobre a vida e suas dimensões e consequências. Tudo é, e está, em teia. Complexos.

Por isso: Obrigado Deus por chegar até aqui. Obrigado pela vida. Pela doença, que promove pensares sobre os cuidados com a vida. Obrigado por tudo.

Pensando bem, tenho só a agradecer. Pedidos e desejos (ainda exageradamente presentes) são excessos de uma personalidade em constante conflito entre potencialidades, possibilidades e vontades reprimidas por um passado que, inexoravelmente, me acompanha. Ou seja, o que DEVO e o que POSSO? Entrementes, percebo ser cada vez mais difícil sobreviver. Viver então... Uma questão humanitária mais ampla do que meus pensares neste momento. Culpa minha? Sim e não.

O que entendo por Deus (a Quem agradeço), até aqui? Não muito e, talvez, nada de importante. Imagino ser Deus uma dessas categorias necessárias aos humanos para representar algo que não se alcança no real. Cria-se, assim, realidade. Satisfaz a muitos. Para mim, não. Por isso, o que penso sobre Deus, e suas consequências, está sempre em ato de pensar. Significa que não tenho ‘pensamento’ formado, nem expressado. Mas gosto de refletir e estudar sobre.

Deus ajuda? Influencia na vida das pessoas? Sim e não. Mas isso é uma conversa para outros tempos, se os tiver.

Bem, e aí: como foi chegar até aqui?

Rapaz, é muita coisa. São seis décadas de experiência sem conseguir contar como se passaram, de fato. Rápido demais. Um sopro. Mas algumas lembranças ou memórias são possíveis evocar. Somos o que somos capazes de recordar, diz Iván Izquierdo, teórico da memória.

Cada um de nós, creio, tem na infância e entrada da adolescência os melhores endereços para reminiscências que melhor se instalaram no subconsciente/inconsciente. Sem poder situar o tempo cronológico exato dos acontecimentos, mas alguns me são bem nítidos, ainda. Assim, pretendo-os lembrar. Antes, para meu bel-prazer, depois, para quem tem a curiosidade ‘de me ler’.

A inocência e ingenuidade foram marcas fortes presentes na minha realidade que posso acessar. Além de família pobre, da roça, naqueles tempos, poucos eram os pais que se preocupavam para transmitir aos filhos algum valor cultural. Predominava o comportamental em detrimento do cognitivo. Educado era sinônimo de bom comportamento (Bildung). Lembro, porém, em alguns domingos meu pai sentava no pátio e lia uma revista alemã (Paulusblat)¹. Ensinou-me ler em alemão por meio da mesma. Meus rudimentos em alemão, tanto em compreensão e leitura, devo a meu pai e a esses momentos. Fora isso, não me lembro se meus pais em algum momento incentivavam estudar. Aliás, naqueles tempos, idos dos anos 1970, estudar era coisa de gente rica. Pobre nascera para cuidar da roça e, depois, trabalhar para os outros ‘em troca de pão’ (Milton Nascimento).

Meus pais nunca foram à escola para saber como eu estava aprendendo. Apesar disso, lembro-me que o professor tinha poder igual ou mesmo maior que os próprios pais sobre meu comportamento. Isso valia para o espaço escolar e extraescolar, pois o professor podia intervir em qualquer momento para corrigir comportamentos inadequados. E isso aconteceu comigo em alguns momentos na convivência social. Minha rebeldia vem de longe. Mas, como digo sempre, a vida forjou adaptar-me e... calar.

Lembro alguns detalhes significativos da escola primária. Do primeiro ano, ou primeira série, lembro que comecei estudar usando lousa de uma fina lâmina feita de pedra de ardósia (² ³). Já em processo de extinção, pois quem podia comprava cadernos e grafite (lápis), os outros anotavam na lousa. Durante a aula registrava-se o conteúdo e quando enchia o jeito era apagar para escrever mais. Servia mais para as atividades de casa (‘tema’). Ainda durante o primeiro ano ela quebrou, dentro da bolsa, numa das muitas confusões que aconteciam entre colegas na volta para casa. Foi quando tive acesso ao primeiro caderno e lápis de grafite (1968). Nada era difícil, tudo era vida.

Os primeiros três anos foram com o mesmo professor. Seu Bertino. Impossível esquecer para quem o teve como... Meninas sentavam de um lado, meninos de outro. As classes para sentar eram por pares4. No quarto e quinto ano, uma professora ensinava. Primeiro encontro de todos os meninos com a ideia de observar uma mulher mais de perto que não fosse a própria mãe5. Freud alerta para as insanidades subjetivas consequentes das experiências mal geridas nas infâncias mal educadas. O futuro... confirma-as.

A separação de mulheres e homens ocorria também em outros espaços sociais como igreja e festas. Por vezes conto em sala de aula, hoje, para meus alunos que, naquele tempo, o maior desejo de um menino era ver o tornozelo ou joelho de uma mulher. Isso era sensualidade pura (Insana? Sim, mas era). Ver outras partes, exibindo-se em desfiles, como hoje em dia, nem se cogitava. Nem nas revistas masculinas mais ousadas da época. Só mais tarde, lembro, já por volta de 12 a 13 anos que as coisas mudaram. E rapidamente.

Para mim, e somente para mim, os anos 1970 iniciaram o processo de liquefação dos padrões culturais (mais ou menos) cristalizados até antão. Depois... virou uma bagunça. Que continua evoluindo. Gostava desta bagunça, na época. Hoje, com alguma maturidade, penso eu, e somente eu, que a volatização dos valores tradicionais clássicos, iniciados ou potencializados naquela época, PODEM ser a raiz da destruição do que se chama sociedade. No futuro sobreviverão tribos ou grupos. A sociedade, como a pretendemos, desaparecerá (Torre de Babel Moderna). Minha opinião.

Não havia uniforme escolar nos primeiros anos, na minha escola. Nem transporte. Os que moravam mais distante da escola chegavam de bicicleta, cavalo, carona com os pais, vizinhos. Eu, morava próximo a escola, ia a pé mesmo. De chinelo. Dias de chuva, descalço. (A escola era o melhor lugar do mundo. Mágico, pois era o único local em que se falava de um mundo que não era possível conhecer em outros espaços). Sapato também era coisa de poder. Mesmo que este sentido de ‘poder’ não era conhecido. Meu primeiro calçado oficial era um par de congas7 – na primeira comunhão. Era um orgulho danado. A vida era mais... vida.

Do processo de aprendizagem lembro pouco. Revendo, muitos anos depois alguns cadernos que havia guardado numa caixa no galpão do sítio, observei que escrevia muito. Nunca reprovei. Por isso, creio, que fui um aluno ‘menos pior’.

Mas, a diversão na escola era mais importante que a lição. Primeiro o jogo de bola, depois, as pescarias nos intervalos (recreio), o que me renderam histórias e marcas existenciais permanentes. No jogo de bola recebi o apelido que por longo tempo me caracterizou. Creio ser fator que determinou alguns comportamentos e raízes subjetivas que ainda não me são adequadamente claros e/ou conscientes. Bullying simbólico. Talvez não tenho noção da dimensão de como isso me afetou pelo resto dos meus dias.

Lembro que, os maiores, em algum dia da semana jogavam bola e batiam pênaltis entre si. Eu devia estar no segundo ano e invadi o espaço dos maiores e chutei, indevidamente, um destes pênaltis, fazendo gol. Isso me rendeu, primeiramente o nobre apelido de ‘paulo césar’, referenciado por Paulo César Carpegiani que era famoso jogador do colorado (Inter) naquela época. O problema que os nomes relacionados ao apelido evoluíram de tal forma pejorativamente que são inomináveis neste espaço. Marcas subjetivas que se carregam para sempre. Uma vida adulta elegante começa na pequenez espontânea e respeitada.

Sim, eu era ingênua, fanática e inconscientemente um indivíduo que idolatrava o futebol, sem entender o que isso significava, de fato. Era colorado a ponto de brigar com quem ofendia o time. Tudo tinha de ser vermelho – até o pensamento. Doença, hoje sei. Curado? Penso que sim, pois hoje detesto futebol e o considero a maior idolatria e promotor de desigualdades sociais só comparado com alguns sujeitos considerados os mais ricos do planeta. Pobre deles e de todos que tem no futebol uma idolatria sem a devida reflexão e atitude crítica. Tudo que produz o aumento potencial da desigualdade social a partir do fenômeno, considero-o desumano e desumanizador.

Remetendo-me, neste momento, para fora da vida escolar, lembro de duas atividades cotidianas principais, entre muitas. Roça e jogar bola. A partir da vida escolar formavam-se os grupos parceiros e amigos. Amizades, tive muitas. Amigos, um somente. Primeiro, um vizinho que depois (não me lembro o tempo exato) foi substituído, lentamente, pelo ‘Zé’, por motivos pragmáticos, a música. A amizade é eterna? Não sei. Penso que não. Entendo ser como um ‘valor-crença’, precisa ser realimentada. Deixando de ser ‘cultivada’, PODE perder o significado, assim como todos os aspectos afetivos que chamamos de sentimentos como amor, amizades, parcerias, companheiros... tudo, (sentimentos, valores, crenças também), ainda mais nos momentos atuais, é líquido. (Bauman).

Jogar bola era tão importante que negociávamos com papai ir a roça mais cedo para, antes da noite, poder jogar bola com os meninos da vizinhança no campinho que ficava no lugar em que hoje se situa o clube social da comunidade. Era uma festa todos os dias em que não chovia. Nos dias que chovia o suficiente para o arroio ficar vermelho (sujar a água), o futebol era trocado pela pescaria. Quanta lembrança boa das pescarias. Já vou pescar, aqui.

Um detalhe sobre o futebol em que trago a mais significativa personagem da minha vida para a história: minha mãe. Não há e nunca haverá outra pessoa com tantos significados na constituição da minha personalidade. Alguns significados só entendi bem lá na frente da minha existência; alguns ainda estou procurando entender e até estudar como se fixam na vida, comportamento e constituição da subjetividade de um filho. Mãe é raiz matricial dos desejos, afetividades, sensibilidades constituição e da subjetividade da vida inteira de uma pessoa. QUANDO é mãe. A minha foi. Ainda que a afetividade dedicada em vida não foi tão intensa, pois a intensidade – e toda afetividade – é uma aprendizagem. Não aprendi ser afetivo no lar, tive de me apropriar deste valor pela a vida a afora. Não foi culpa dos pais, foi culpa da época, da cultura. Hoje defendo a ideia de que a constituição de uma afetividade sólida e em harmonia com princípios éticos e morais na infância é garantia de um adulto equilibrado em todos os sentidos que podemos atribuir a uma personalidade sadia. Infelizmente, a afetividade, como outros valores, está saindo da vida concreta para entrar nas histórias futuras contadas aqui e acolá.

Voltando ao futebol. Penso não ser exagero em afirmar que toda vez que eu ia jogar bola minha mãe dizia: – meu filho deixa disso, você só se machuca. Todo menino se machucava muitas vezes. Era joelho torcido, pedaços de pele arrancada, juntas destroncadas, entre tantos outras que eram comuns. Um dia, creio lá pelos 12 anos, num desses jogos dominicais no campo oficial, que à época era um misto de grama, terra e pedras expostas... (mas jogar futebol valia todos os riscos), quebrei o braço direito e bem na junta mais importante do braço. Lembro-me que me diziam que, salvo raras exceções, este tipo de acidente deixaria o braço torto.

O pior viria. Na comunidade não havia ninguém que ‘consertava’ este tipo de acidente. O mais próximo era na comunidade vizinha, hoje cidade de Salvador das Missões. Era uma senhora, já de idade que era a referência da região. Nesta época ninguém procurava médico para este tipo de coisa. Ter carro nestes tempos também era coisa rara e para poucos. Meu tio-padrinho, uma das famílias mais abastadas na época, assim mesmo, tinha charrete7 e, com esta, seria o jeito de viajar os aproximados 8 km até o destino. Chegando lá a senhora imediatamente informou que ela não se arriscaria de ajeitar, pois se tratava de situação delicada, bem próximo a junta do meio do braço (cotovelo) e o perigo de ficar torto era muito grande. Indicou-nos um tal de senhor Nedel, em Campina das Missões, distante 17 km. Lá fomos nós. No final do domingo em casa, com o braço enfaixado de pedaços de bambu, o recurso mais moderno da época em comparação ao gesso atual. Resumo da ópera. Nunca mais joguei bola, nunca mais gostei de futebol. O braço ficou normal. Sobre este episódio já pensei muitas vezes pela vida a fora. Penso que tenho um protetor invisível, talvez um anjo. Talvez todos têm. Sei lá. A vida tem lá seus mistérios. E é bom que tenha.

Voltando à vida escolar. Outro episódio significativo, entre muitos, foram as pescarias nos ‘recreios’. Em vez de participar da merenda (obrigatória), algumas turmas, amigos parceiros, resolveram pescar no arroio que se situava a 50 metros da escola. Naquele tempo pescar era sinônimo de pegar peixes. Muitos peixes. Nossa alegria terminou quando um colega de sala nos dedurou para um dos diretores, que nos flagrou e, lógico, castigou, merecidamente. Mas o pior viria como consequência da pescaria. A turma, dedurada, resolver se vingar do colega e dar-lhe uma boa surra. O fato gerou dois castigos (inesquecíveis) e solidamente reprimidos no inconsciente. Além de levar o famoso ‘tapa’ do professor-diretor no sábado diante de todos os alunos (o único que levei) a surra do meu pai foi a mais dolorida e está cravada na alma que carrego. Mais tarde, este colega tornou-se meu melhor parceiro de pesca. Com ele tive uma das mais espetaculares pescarias da infância que me lembro. Em uma tarde de domingo, eu e ele juntamos alguns sacos que serviam para embolsar batatinha (tipo de rede)8 e pescamos mais de 13 quilos de peixes fazendo arrastão no arroio da comunidade. A vida era mais... vida.

As sinapses – com esta história, acessaram outra: em outro desses arrastões no arroio, uma turma, eu também, matamos uma das maiores cobras que eu havia visto. Era domingo. A cobra foi colocada em uma cesta e levada ao clube para todos verem o tamanho da ‘pescaria’. Depois ficamos sabendo que era uma cobra ‘caninana’ e que não era venenosa, portanto, não seria ideal matá-las, porque são predadoras naturais. (Isso não é história de pescador). Bons tempos. (sobre sinapses, uma tese, minha: o pensamento é concreto não abstrato. Talvez a neurociência prova-o a tempo de eu confirmar minha tese).

Falando em sábado, vivi o tempo da sabatina. Todos os sábados o professor tomava a lição. Uma espécie de prova se comparada às avaliações de hoje. (Sábado-sabatina).

Terminei a escolaridade básica, até quinta série e depois, como todo filho de pobre, fui para a roça ajudar a família em vez de continuar os estudos em outra localidade, o que implicava em despesas que minha família não podia custear. Não que no período escolar não estava ajudando na roça. Lembro, estudava de manhã, almoçava e era roça a tarde toda. À noite, à luz de lamparina de querosene fazia as tarefas (tema). A energia elétrica chegou a nossa casa só nos idos de 1970. Hoje reclamamos dos tempos difíceis. Não me lembro que naqueles idos alguém reclama do que tinha ou não tinha. A vida era mais... vida.

Uma peculiaridade. Naquele tempo somente se entrava na escola aos 6/7 anos. Não havia pré-escola ou creche no contexto da minha região (Educação Infantil).

Tenho lembranças anteriores a esse período escolar, mas são difíceis de situar. Lembro, por exemplo, que eu, como o mais velho, e os demais irmãos são próximos em idade, era (eu) o responsável por cuidar dos pequenos. Esta lembrança aparece nítida em relação aos trabalhos de roça. Nossa mãe – que desde cedo assumiu a chefia da casa – encontrava um arbusto ou árvore que fazia sombra, colocava os pequenos numa cesta e eu ficava como responsável pelo cuidado com os mesmos. A vida seguia e se fazia em ritmo natural.

Sobre pescar, alguns registros são importantes. Para mim. Como já referido antes, tinha peixes em abundância nos arroios da comunidade. Uma chuva rápida que sujava um pouco as águas, e quem gostava estava pescando. Nesse sentido meu pai era parceiro certo. Tinha a mesma calma que eu cultivo até hoje. Da pescaria à vida. Para pescador paciência é virtude. Pescava-se de diferentes formas. A linha de pescar, totalmente manual era a mais comum. Depois se fazia barricadas em parte de poços mais profundos, desviando a água e com baldes simples, em turmas colaborativas, esvaziava-se o poço com garantia absoluta de muitos peixes.

Outros momentos, anteriores a escolarização, relacionam-se às brincadeiras e brinquedos. Nunca tive um brinquedo comprado por meus pais. Isso existia, mas era uma realidade para pessoas abastadas ou com relação com pessoas das cidades maiores, de onde vinham as novidades aos interiores, distante de tudo, naquele idos.

Os brinquedos eram feitos, ou pelo pai, ou por conta própria com restos de materiais ou mesmo construídos com objetos aliados a alguma criatividade. Lembro que esperava ansiosamente as latas de azeite de cozinha esvaziarem para fabricar mais um carro novo na coleção. De resto, fabricavam-se brinquedos dos mais diferentes materiais: restos de ossos, utensílios jogados fora, arranjos de folhas, cipós, linhas de pescar... lembro que desde pequeno, em espaço do potreiro, eu havia construído uma cidade com tijolos e outras pedras em que passava horas brincando. Ainda hoje, quando vou ao sul, vou ao espaço com a inconsciente vontade de encontrar vestígios de um passado... A vontade de brincar retorna das profundezas da subjetividade como vontade proibida e reprimida pelo aculturamento das essências dos seres humanos. Deveríamos brincar a vida toda. Com tudo. A vida seria mais leve. Brincar é mais importante que estudar, trabalhar...

Linhas de pescar, um pedaço de tábua, com duas latas de aceite foram a base do primeiro instrumento musical, que eu chamo de algo parecido com violão, que se constituiria em uma das obsessões mais emblemáticas da minha vida, até hoje. Emblemático no sentido de relação entre o que a música representou na minha vida em dado período e de como isso se sucedeu mediante as precárias condições que eu tive para chegar a isso. Uma relação inicialmente estritamente simbólica, mas alimentada subjetivamente a tal ponto que se tornou realidade-base da minha vida futura para um longo período.

Referenciais para talento musical, na minha procura, que continua até hoje, não existiam. Algumas situações aceito como mediadoras da minha relação com a música. Meu pai tinha uma flauta, as vezes tocava. Havia um filho, da vizinhança (seminarista) que me inspirava; e havia o ‘Zé’, que se tornou parceiro desta realidade, resultando em saudosas e complexas experiências de vida. Mesmo com os três elementos que, reconheço, tiveram influências para que eu tivesse experiência com ‘carreira’ musical em um período da minha vida, não me identifico com talento musical para tanto. Até este momento atribuo meu lado musical a teimosia em insistir que posso fazer algo parecido com música, de fato. Continuo exercitando a prática ao violão, continuo estudando, publicando e até tenho projeto na área.

Fui músico de muitas bandas. Longos anos da minha vida só me dediquei a isso. Cheguei, na época, participar da melhor banda de músicas tradicionais ou alemãs da minha cidade. (Isso já se refere a um período ‘pós-seminário’. Depois eu volto. O monólogo está bom e leva a saltos permitidos).

A carreira de músico levou-me a conhecer a vida além das fronteiras da trivialidade da experiência cotidiana familiar ou local. Conheci os estados do sul, como Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, além dos países como Argentina e Paraguai, de carona com a música. Cheguei a participar de gravações9 que, de certa forma, permitiram meu registro permanente nesta área. Quantos festivais de música participei, quase sempre com um parceiro especial desde os tempos de seminário (seu Pedrinho – ele era Pedro Paulo e eu Paulo Pedro...). Ainda assim, repito, não consigo me identificar com talento no sentido que eu atribuo a esta categoria. Fui (sou) músico por teimosia. Ainda que, teimosamente, alcancei algum resultado no contexto da música.

Neste sentido situo-me problemático quando se discute que o ser humano pode aprender tudo e qualquer ofício, a velha discussão entre talento e aprendizagem. Isso vale para outras habilidades, especialmente no campo das artes. Em síntese, não concordo com a ideia, apelando para a música como exemplo. Minha proposição é: todos podem ‘arranhar’ um instrumento (como eu o faço), mas nem todos podem ser músicos virtuoses. Estes, estão conectados a algo que a aprendizagem não pode promover como habilidade. Mas... como gosto de dizer, ainda sou um guri novo, ainda posso aprender muitas coisas. Quem sabe ainda mudo de ideia...

Ainda defendo, também teimosamente, que, mesmo o virtuose em potência, se ele não tiver acesso ao instrumento ele nunca nem saberá que tem esta habilidade para o referido. Havia um tempo em que se dava o nome de dom para isso. Atualmente a palavra dom não é bem vinda nos espaços acadêmicos que discutem (e se acham proprietários das verdades) as origens, etapas e limites dos conhecimentos. (Epistemologia).

Voltando ao ‘Zé’. Antes, um aparte: digo, e assim o é, não tenho amigos. Mas tenho três parceiros em vida, pelos quais faria qualquer coisa possível em qualquer momento. E ‘Zé’ é um deles, apesar da distância e tempo que nos separa. Outros dois estão no meu contexto em que vivo atualmente. Eles não sabem, mas o mais importante é que eu sei do valor que eles têm, para mim. Havia outro, mas já se mudou para outra dimensão da vida.

Com ‘Zé’, duas experiências quero deixar registrado aqui. A primeira – a compra dos nossos primeiros violões de verdade. Tocávamos com violões velhos, faltando corda, partes e tal. Tivemos uma ideia. Não sei como surgiu, mas mudaria nossas vidas. Não tínhamos dinheiro, mas o sonho de ter um violão novo era algo mágico. Resolvemos, eu e ele, aos domingos andar pelas roças e juntar os grãos de soja que eram perdidos ao redor do lugar em que se instalava a trilhadeira10 para tirar/limpar a (leguminosa) soja. Em uma só estação de colheita juntamos dois sacos de 60 quilos. Um saco para cada um. Vendemos a soja e viajamos até Cerro Largo e compramos um violão (Bazar Leão), jogo de cordas, palhetas e sobrou para comer um pastel e tomar uma coca-cola. Coisa de gente chique.

A segunda – para aprender tocar o instrumento não havia ninguém na comunidade e para comprar livros/revistas não tínhamos dinheiro. A ideia surgira. ‘Zé’ tinha um parente (primo, acho) que tocava violão, que morava em Campina das Missões e que à época era componente de uma banda com destaque na região. Para aprender resolvemos ir à casa do Adécio aos domingos. Como? A pé (aproximadamente 10 km). Para pagar as lições levávamos algumas dúzias de ovos. Rudimentarmente, aprendemos. Foi a base para muitas alegrias futuras. Os tempos eram difíceis, mas a gente não sabia que eram... (difíceis).

Entrementes à constituição de dois ‘artistas’ e da saída da comunidade, a memória pesqueira deixou as melhores, e também tristes marcas. Das boas pescarias já evoquei detalhes, mas umas das mais tristes sempre lembrarei. Foi 1975 ou 1978 em que o primeiro litro de veneno para eliminar pragas da soja entraram na comunidade. Até este momento, como antes já lembrado, pescar e peixes era sinônimo. Era só pegar vara, linha e algumas minhocas na mão mesmo, ir ao riacho e se voltava com um bom número de peixes. Por vezes algum peixe mais graúdo, o que era festa e conversa por alguns dias. Mas naqueles idos... uma tarde, lembro-me bem, um vizinho, depois de passar veneno foi até o riacho e limpou os tanques em que armazenava o veneno que passara na roça durante o dia. No outro dia, o arroio amanheceu de luto. Todos os peixes estavam mortos daquela faixa em diante. Posteriormente outros agricultores passaram veneno e cometeram o mesmo crime ambiental e simplesmente mataram todos os peixes em toda extensão do arroio. É uma das lembranças mais pesadas que meu subconsciente insiste em lembrar. Resumindo: hoje o arroio ‘Catarina’ não tem mais significado.

Mas minha vida mudaria alguns anos depois. Até lá, talvez vivi o melhor da vida no que se chama, hoje, de transição entre a infância e adolescência. Naquele tempo ou era criança ou adulto, pelo menos no comportamento. E, lembro, a vontade de ser sempre criança estava impregnada no comportamento e na vontade. Vivia-se pouco. Alongava-se as oportunidades para tanto.

Da passagem da infância à adolescência, quase sempre no mesmo ritmo ‘roça-futebol-festa-baile’ e tocar violão, surge o destino: dos mais velhos de cada família, especialmente nas tradicionais famílias alemãs, o convite de dedicar à vida religiosa o filho mais velho. Um irmão de alguma congregação religiosa visitava as famílias e fazia o convite. Embora tardio, em idade, na minha família o convite também chegou e o missionário convenceu meu pai de que eu deveria servir à igreja. Lá fui eu para o seminário. São as rupturas da vida que nos levam a outras vidas... e outras rupturas.

Quando penso, especialmente, em ‘se não fosse o seminário’, o que eu seria hoje (?), a reflexão leva-me a outras... A vida depende de escolhas, de oportunidades, de fatores alheios a nossa vontade. Todos os eventos que convergem (ou divergem) para constituir nossos destinos não podem ser previamente direcionados. Não podemos escolher uma determinada situação e por meio dela garantir que seremos isso ou aquilo. Não temos esse poder. Podemos escolher entre... Ainda assim, dizer e afirmar que diante dessa escolha sabemos como a vida vai se direcionar, não sabemos, de forma alguma. Por isso, meu sempre teimoso significado, conceito ou definição de vida: contingência.

Bem, o seminário segurou-me o suficiente para entender a vida, adquirir o gosto pelo estudo, especialmente a leitura, e tocar violão com habilidade suficiente de tocar em bandas de baile daquele tempo, motivo que me desviou do caminho de ser missionário da igreja. É uma reminiscência que me assalta por vezes. Penso que eu seria um padre interessante. Em algumas situações alunos até me perguntam se eu já fora padre. Quando pergunto por quê, respondem pelo modo de falar mais devagar, com certa calma e de maneira didática, exageradamente didática, por vezes.

Saí do seminário direto para uma banda. Os Imperiais. Lembro que meu teste na banda foi cantar ‘Jalisco no te rajes’ (música mexicana). Por muito tempo, lembro, durante uma noite de cinco (5) horas de baile cantava-se apenas três músicas. O resto da noite era música de sopro, ou de ‘banda’, como se chamava a música de baile daquela época. Interessante lembrar que no seminário eu fazia parte da banda do seminário. E nesta banda, praticamente só se cantava. Alguma exceção com o sax do ‘Michel’. Bom lembrar os componentes da banda, seu Pedrinho (teclado/gaita), o ‘Schwatz’ (Contrabaixo), Michel (Sax), eu (guitarra/cantor) e o baterista revezava bastante, tanto que não me lembro o nome de um. Até hoje penso, como algum dia eu pensei que era cantor. Achismo puro.

Com Pedrinho, ao sair do seminário, entre um baile e fins de semana livres, formei dupla que rendeu muitas festas, casamentos, participações em festivais, além de histórias vividas e convividas. Era um parceiro dos mais legais que tive. Mas... a vida leva e dilui tudo, até as parcerias. Inesquecível aquela noite, no salão paroquial, um casamento, casa cheia e nós dois em cima de duas mesas no meio da pista, de gaita e de violão tocando e ‘gritando’ para o povo dançar ao redor das mesas, com dois palhaços, literalmente, de banda em cima de mesas como palco. Foram um sem números de festas populares que nós animamos sem ter suporte como caixas de som. Era no peito mesmo. Bons tempos.

Entrementes, a vida em bandas rendeu tanto que merecia um livro só. Quem sabe (?). Em síntese, foram 10 aos de muitas experiências de diferentes formatos e qualidades. Naqueles idos, praticamente (eu) não fazia outra ‘coisa’ do que ensaiar e animar bailes pela região sul e países vizinhos. Pagava-se bem, a música e os músicos não tinham a visibilidade de hoje, mas eram bem pagos. Não havia redes sociais. O meio mais moderno de comunicação era o telefone fixo e mesmo assim não era qualquer pessoa que tinha. Os telefones públicos (orelhões) tinham a mesma fama que tem hoje os celulares. Em alguns, em dados momentos, tinha fila para fazer ligações. Os tempos eram outros. Melhores? Não, outros.

Nesse meio tempo, também constituí um curso de violão, teclado e flauta doce. Essa iniciativa, tímida inicialmente, rendeu frutos positivos e negativos durante os anos de permanência. De um simples curso doméstico, surgiu a oportunidade de trabalhar com escolas de vários municípios por meio de uma lei cultural à época que tinha a intenção de valorizar as artes nas escolas como educação e formação necessária para as novas gerações. Digo ‘tinha’ porque até hoje essa pretensa ‘valorização’ está pendurada nas intenções, somente.

Aos poucos, essa iniciativa transforma-se na Academia de Música Allegro, que leva à loja de instrumentos e acessórios musicais Allegro. Constituindo-se loja e ensino de música, no mesmo espaço, foi encontro de mais de 300 alunos com a música, entre eles alguns atuando, hoje, em bandas importantes da região. Os cinco anos de existência resultaram em declínio da participação em bandas, afastando-me da vida noturna, agitada e sem destino fixo. De viajante-aventureiro solitário e ‘sentindo o peso dos anos’ (como cantava Teixeirinha) tentei ser gente ensaiando uma vida séria diante da sociedade. Casei e tentei ser homem sério diante da sociedade. Tentei, porque nunca deu certo. Quando reflito sobre isso, com base no que sei do histórico da genética comportamental descendente da parte do pai, avo e ‘bisa’, chego a ponderar ser genético a teimosia de ser contra alguns argumentos morais que se constituem peso intransponível para muitas pessoas.

Depois das investidas no comércio, na vida social regrada e ‘direita’, passando por alguns eventos econômicos arrasadores dos anos ‘80’ e ‘90’, fui obrigado, pelas circunstâncias contextuais e da falta de experiência com alguns mecanismos econômicos e, também, da teimosia minha com certas ideias, fui obrigado (ou me obriguei) a mudar de comportamento, de lugar, de estado e de vida.

Termina, assim, a primeira fase da vida. Quarenta e três anos, ano 2002, e o Nordeste será meu novo lar, até aqui, por ora. Como já indicado no início do ‘post’, aqui, no Nordeste, tudo mudou. Ou melhor: transformei meu modo de ver, de ser, de me relacionar, social e particularmente. Tudo isso incitado por diferentes fatores, pessoas e situações.

Uma segunda versão, mais ousada e com os ingredientes que até aqui considero proibitivos em relação a julgamentos indevidos (todo julgamento é indevido, penso), pretendo escrever a partir de agora e publicizar quando – e se – chegar aos 70 anos. Até aqui, digamos, foi a parte leve de 60 anos vividos com intensidade. Não sem ranços e desavenças com o destino, com a moral, a ética e a sociedade. Considero-me, ainda, um antissocial cauteloso. Não me adapto. Adéquo-me. Não sem consequências, eu sei.

Que venha mais uma década de experiências em formatos que a vida, hospedada nesse corpo, permitir.

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Viva 10.02.1961.

A você que chegou até aqui, meu respeito e consideração. Saúde e paz.

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* Sessenta anos:

* P.V.C. – (Porra da Velhice Chegando)

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