Sentimentos de menina.
As recordações sempre nos apontam caminhos. Caminhos tortos ou não, carregados de paisagens exuberantes ou aterradoras, caminhos banhados por pequenos riachos com a suavidade do barulho de uma água límpida e plena, além do perfume de pessegueiros em flor. Ou com o cinza das nuvens emburradas anunciando tempestades. Mas são caminhos. E nada mais intenso que valorizar as estradas que percorremos.
Os sonhos vão banhando o tempo como um sopro na alma avisando: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, apenas para lembrar Fernando Pessoa.
Pude repensar a minha meninice assistindo o filme indiano ”Filhas do destino”. O drama das mulheres de castas inferiores numa Índia que teima em não sair do lugar em alguns aspectos. Aliás, o coração humano teima em ser duro, rude, canhestro tantas e tantas vezes. Isso em todos os lugares. Não importa, está dentro do peito.
E no filme, qual na minha vida de menina, aparece a expressão: “quero estudar e trabalhar para ajudar a minha mãe”.
Eu comecei a me lembrar de quantas vezes eu disse isso! Foi a marca de muitos anos. Estudar sim, estudar sempre, com dificuldades cognitivas que não desejo à pior pessoa do planeta . Igualmente a dificuldade de relacionamento, a timidez visceral, a vergonha de estar no mundo. A inibição em demonstrar que havia necessidade e que havia pressa em minimizá-la.
Eu também sabia que tinha que ajudar a minha mãe.
O meu primeiro emprego foi uma lástima. Tratava-se de um estágio num curso Pré-vestibular e eu tinha medo das pessoas, do contato, dos olhares. Muito medo. Logo no primeiro mês desenvolvi uma alergia que eu começava a inchar nas mãos, nos lábios e tudo repentinamente, assim que chegava ao local de trabalho. Era como se as energias se estagnassem... mas eu queria trabalhar e ajudar a minha mãe.
Fomos ao médico e ele orientou para que eu não comesse chocolate... não vou criticá-lo. Era o conhecimento da época. O emocional pouco importava para aquele alopata. O cacau não era bom e ponto.
Com o tempo o inchaço foi sumindo e era como eu lhe dissesse: você não vai me atormentar. Eu vou fazer o que tenho obrigação. Vou enfrentar com alguma coragem e vou descobrir como se faz isso.
O meu primeiro salário foi mágico. O único salário da casa. Comprei flores para a mãe e dei o meu salário inteiro prá ela. Eu estava feliz porque estava me superando, fazendo a roda girar, fazendo o meu mundo existir.
No dia seguinte, a pior surpresa: cheguei em casa e o meu irmão estava cheio de roupas novas. O meu irmão, que morreu sem nunca ter trabalhado na vida e nunca se preocupado com a mãe...