Pequenos prazeres

É da nossa essência: estamos sempre querendo mais! Para que, ninguém sabe, uma vez que, com certeza, nada do que aqui acumulamos levaremos conosco ao fim da vida. O incentivo que recebemos é pela busca, pelo ter. Alguns têm a felicidade de perceber antes de partir desse mundo, o seu equívoco, e começam a valorizar o ser. Há, no entanto, alguns privilegiados que atravessam toda a sua vida desfrutando de uma quase utopia de vida comunitária sustentável.

Fiz uma visita algum tempo atrás a uns parentes, no interior de Sergipe, que mexeu muito com as minhas idéias, justo no momento em que estava lendo o Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, de Serge Latouche. No livro o autor fala da oposição entre a economia de cowboy e a economia do cosmonauta. Na primeira, a maximização do consumo se apóia na predação e pilhagem dos recursos naturais, enquanto que na outra, a Terra se torna uma nave espacial única, desprovida de reservas ilimitadas, seja para dela extrair, seja para nela verter seus poluentes. E conclui, ironicamente: “Quem acredita que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, ou é louco ou é economista.”

Mas voltemos à minha visita. Trata-se de uma família de pequenos produtores rurais – e aqui quando falo pequeno, é pequeno mesmo, que não ultrapassa os dois hectares – o que me permitiu viver uma experiência que, nos quase setenta anos de vida, nunca havia experimentado. Era o final da tarde de uma véspera de São João, quando cheguei por lá. Depois de desapear, o meu tio me chamou para “ir lá em cima” com ele. E o que é que tinha acolá? Era o milho para ser quebrado no pé, o amendoim, a batata e a macaxeira para serem arrancados do chão, e a laranja para ser tirada, também do pé. Tudo isso para ser consumido, mais tarde, ao redor da fogueira, feita com galhos de candeia, recolhidos pela terra.

Para o dia seguinte ficou reservado, logo cedo da manhã, tirar o leite da vaca e escolher no terreiro a galinha de capoeira que seria degustada no almoço. Ia fazendo essas coisas e observando como elas aconteciam. Tudo que aos nossos olhos de leigo parece lixo, ali é aproveitado para fomentar novas produções. De uma maneira rústica, é bem verdade, mas apoiada no conhecimento tácito passado de pai para filho, desde tempos imemoriais. Ali tudo é tratado como finito, daí o cuidado de aproveitar todas as sobras na geração de novos produtos.

Mas não é só isso. Presenciei ainda duas pessoas chegando à propriedade do meu tio em busca de uns milhos, para também assarem em suas fogueiras. A resposta dele foi muito simples: “- Vá lá em cima e tire o que você precisar.”

Logo me veio à lembrança o livro de Atos dos Apóstolos, lá no Novo Testamento, e o relato de como viviam os convertidos cristãos: Além de perseverarem na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações, eles tinham tudo em comum. Distribuíam o que tinham entre todos, à medida em que alguém tinha necessidade.

E assim vivem esses meus parentes. Remediados, tendo de tudo um pouco. Não só pra si, mas para acudir a qualquer um da sua comunidade que deles precisem. E aqui pra nós: esses pequenos prazeres de ver que essas coisas ainda acontecem no mundo de hoje, não tem cartão de crédito que pague.

Fleal
Enviado por Fleal em 02/03/2021
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