É um pássaro?

Hoje um pardalzinho nos visitou em casa. Já tentamos evitar que façam ninhos no telhado, principalmente com medo das doenças que penas de pássaros podem trazer. É o velho drama entre humanos e natureza: parceiros ou adversários? Como pai, como mãe, a gente quer mais é proteger nossas crias. E aí a natureza, por vezes, parece uma ameaça.

Estava abatido, o filhotinho. Chamei as crianças para tocá-lo: é mágico! As penas tão macias, tanta fragilidade naquele pequeno corpo. Mas demostrava muito medo. Era a hora de mais um resgate, como fazemos quando um mosquito não consegue sair, um besouro não consegue se virar sozinho. Colocamos o pequeno na varanda, para que a mãe o encontrasse e, num papo de aves, resolvessem a situação.

Voltei para dentro de casa. Retomei o trabalho. Ou melhor: não voltei. Ah, Clarice, socorra-me! Por que razão cenas tão fugazes nos atingem tanto? Não é apenas um pássaro? Não. É um abismo. Sua fragilidade me assusta. Como pode um serzinho tão indefeso ameaçar um humano centenas de vezes maior?

Era sábado. Como sempre desci o morro que levava à casa de meus primos. Bodoque no bolso, com goma nova comprada na farmácia e forquilha de goiabeira. Estava prestes, finalmente, a me tornar um menino enturmado. Afinal, todos meus amigos caçavam passarinhos. Em minha pobre carreira de atirador havia acertado apenas latas de óleo no alto do mourão da cerca, a tábua da porteira do curral, a manga madura depois de infinitas tentativas. Mas faltava algo iniciático, verdadeiramente simbólico e intenso: eu precisava caçar um passarinho!

Café tomado, queijo fresco de complemento, lá vão os três meninos. Os primos, em tudo que faziam, eram mais. Mais rápidos, mais espertos, mais corajosos. Eram? Ou eu os imaginava assim? Fato é que saímos pelos pastos a fora. Descemos pelo mangueiral, onde em tempos passados existira a casa de meu avô. Cruzamos o aterro da represa. Nada. Os pássaros haviam se retirado? E não era algo assim que eu, no fundo, desejava?

Uma criança é incapaz de crueldade. Não, não é verdade. Uma criança é, sim, capaz de crueldade. Falta saber se foi algo deliberado, pura influência, pressão dos adultos, vontade de pertencimento ao grupo. Noto que minha cabeça dói um pouco, agora, tal qual me recordo que doía também naquele dia. Só não tenho o coração acelerado, porque as quase quatro décadas de distância no tempo me acalmaram.

Por fim, achamos: lá estavam as “coleirinhas”, como chamávamos. Papa-capim, Coleirinho. Uma das coisas mais fofas que há na fauna brasileira. Quatro ou cinco pousadas nos galhos da velha paineira. “É sua vez!”, ouvi de meus primos em uníssono. Não pode ser verdade. Eu criei essa imagem, certamente. Fui eu, réu confesso, quem deu a ordem: “Zé! É sua vez de virar menino de verdade!”. A mão um tanto trêmula. No bolso, caroços de coquinho seco. Bala perfeita para um crime imperfeito.

Sorriram, comemoraram. Eu os perdoo. Projetar um senso ético que o mundo adulto me trouxe para meus primos naquele tempo seria um anacronismo absurdo. O que não sei é se me perdoo. Segurei o bichinho desfalecido, a cabeça ensanguentada. Por fora, um semblante plástico de criança que se orgulha do feito; por dentro uma raiva infinita de, pela primeira vez, ter acertado a pontaria. Foi meu primeiro pássaro abatido. Foi meu último. Voltei para as latas de óleo, as tábuas e as mangas como alvo. Com o tempo, o bodoque perdeu o sentido.

Esse pardalzinho que me visita agora: é a coleirinha viajando no tempo e me saldando novamente? Para me perguntar se ainda sou capaz de crueldade? Não quero. Mas sim! Sou capaz. É isso que me amedronta? Ou é o medo de ser hoje o alvo de um bodoque invencível chamado vida, chamado tempo, chamado morte?

A mãe-pardal agora canta sobre a grade da varanda. Eu torço com todas minhas forças para que ela traga alimento ao pobre bichinho. Ele não mexeu na água, nem no farelo de pão que jogamos para ele. Está cansado, talvez doente. Que os deuses da natureza o curem e conduzam. Que o privem de alguma armadilha, de alguma criança que lhe lance uma pedrada. De alguma gaiola que sequestre seu voo.

É isso! Entendo melhor agora. O pobre pardalzinho que nos visita, piscando acelerado seus olhinhos e arfando de medo me desperta o incômodo que sinto quando vejo gaiolas e aquários. Dá uma vergonha infinita de minha espécie que, talvez por ser incapaz de viver livre, não suporta que os bichos o façam.

Vou ficar com essa imagem: o pardalzinho é a coleirinha. Veio do passado para entrar em minha casa. Mais forte que eu, ela me perdoa.

A dor de cabeça agora é suave. Afinal, já se vão quatro décadas que aquela pedrada me acertou em cheio.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 04/03/2021
Reeditado em 04/03/2021
Código do texto: T7198468
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