TODOS DEVERIAM TER...

TODOS DEVERIAM TER...

(Ivone Carvalho)

Há pouco, lendo u’a mensagem destas que recebemos dos amigos, através de e-mail, em formato pps, e que muitas madrugadas me fazem passar horas diante do micro para organizar os meus arquivos do Outlook e liberar espaço na caixa de entrada, lembrei-me dela.

Já tive oportunidade de escrever sobre ela, ressaltando e homenageando a nossa amizade.

Entretanto, o amor que existe entre nós é tão grande, que senti uma imensa vontade de voltar a falar dessa amiga que há 42 anos é uma verdadeira irmã para mim.

Nós nos conhecemos no meu primeiro emprego, quando eu tinha catorze anos de idade.

Completamente inexperiente, como não podia deixar de ser, já que, até então, eu somente trabalhara em casa como costureira (com diploma e tudo!) e confeccionando enxovais de bebê em tricô ou crochê, e possuindo apenas uma boa caligrafia e um curso de datilografia (será que você, leitor, sabe o que é isso?), fui contratada pelo senhor Olinto, para fazer fichas de contabilidade em seu escritório, já que não fui aprovada no teste de datilografia.

Acho que devo esclarecer, para quem não sabe, que naquele tempo digitávamos em máquinas de escrever mecânicas, por isso a necessidade do curso de datilografia. Hoje, qualquer criança digita, não é mesmo? Mas na máquina de escrever não existia a tecla del e, portanto, não podíamos errar. Também inexistiam as nossas companheiras impressoras, nem xerox, e então precisávamos nos utilizar de papel carbono para fazermos documentos em mais de uma via. Tudo isso exigia muito treino naquela máquina que hoje chamamos de museu, mas foi graças a ela que aprendi a digitar com muita agilidade, com todos os dedos e sem olhar para o teclado, o que me facilita extremamente no trabalho, já que enquanto digito vou lendo o que escrevo e flagrando eventual erro no momento que ele acontece.

Cheguei ao escritório, naquele primeiro de março de 1966, feliz da vida por ter conseguido o emprego, mas frustrada por não ter sido admitida para a vaga de datilógrafa e prometi a mim mesma que aquela vaga seria minha, muito antes do que alguém pudesse esperar, pois o salário era o triplo do que eu receberia fazendo fichas contábeis.

O desafio que me impus fez, entretanto, com que eu não ganhasse a simpatia de algumas colegas de trabalho que viam a minha garra, treinando durante o horário de almoço, após comer rapidamente a refeição que eu levava de casa, e temendo que uma menina como eu, bem mais nova que todas elas, viesse a ser melhor remunerada do que elas, o que veio realmente a acontecer pouquíssimo tempo depois da minha admissão, pois, claro, não dei paz ao meu patrão enquanto ele não me permitiu lhe mostrar que eu já era capaz de assumir o trabalho que eu tanto desejava naquela época. E a sorte (?) ficou do meu lado, pois a moça contratada para a função que eu pretendia e não tinha conquistado, recebeu uma proposta melhor e pouco tempo depois se demitiu.

Bem, mas eu queria falar da Antonia. O preâmbulo foi para dar uma idéia do quanto eu, na simplicidade dos meus catorze anos, no primeiro emprego, me sentiria sozinha se não a tivesse ao meu lado, me apoiando, me ensinando, me ouvindo, me dando a oportunidade de ser sua amiga. Confesso que me sentia mal quando via as outras colegas enciumadas e até discordando dela com freqüência, apenas para mostrar a insatisfação que sentiam por eu tê-la conquistado.

E passamos a ser grandes amigas! Eu já não precisava treinar datilografia no horário do almoço, mas tinha que estudar ou completar alguma tarefa escolar que não concluíra na madrugada, após chegar do colégio. Assim, eu fazia tudo rapidamente para ter tempo de ficar com a Antonia durante uma parte do nosso horário de almoço, que era de uma hora apenas, mas o único tempo que tínhamos para conversar, já que durante o expediente era terminantemente proibido que os funcionários conversassem sobre qualquer assunto estranho ao trabalho.

Trabalhamos juntas durante oito anos. Aproveitávamos sempre o pouco tempo de folga que tínhamos e quando podíamos (e o dinheiro permitia) íamos até o Mappin para fazer alguma compra (lá, tudo era mais barato!), ou íamos comer um (um mesmo!) pastel (no dia do pagamento!), ou dar uma volta na Praça da República. Trabalhávamos na Avenida São João, em frente ao antigo Cine Metro.

Muita coisa foi mudando ao longo desse tempo e nós duas nunca mudamos o nosso relacionamento. Ou melhor, mudamos sim, porque ele ficou cada vez mais forte e mais unido. Quando tínhamos possibilidade, íamos à casa uma da outra, para jantar; ou saíamos juntas, com os nossos namorados, nos fins de semana. Íamos ao teatro, ao cinema ou a algum outro passeio que surgisse e que os dois casais concordassem em ir.

Casamos no mesmo ano, eu no dia oito de julho, ela no dia primeiro de setembro. Nossas famílias, que já estavam unidas numa só, aumentaram muito, pois passaram a fazer parte dela, também, as famílias dos nossos maridos.

Cada uma de nós teve três filhos. Nossos primogênitos nasceram no mesmo ano, dois anos após o casamento. Nossas filhas caçulas (a terceira dela e a segunda minha) também nasceram no mesmo ano. Isso significa que por duas vezes ficamos grávidas na mesma época e demos a luz com diferença de pouquíssimos meses. E, por incrível que pareça, sua segunda filhinha viveu apenas quarenta dias e a minha terceira nasceu sem vida. Assim, ambas temos dois filhos: ela, um casal, eu, duas meninas.

Não existe acontecimento importante, dos últimos quarenta e dois anos, em que não estivéssemos presentes, seja na família dela, seja na minha.

Quando eu estava grávida da Camila, a minha filhinha que nasceu sem vida, decidimos, eu e o meu marido, que a Antonia e o João seriam seus padrinhos. Mas quis fazer uma surpresa para ela e não contei. Só contaria após o nascimento do bebê. Quando eles souberam que a nenê nascera sem vida, fizeram questão de acompanhar o meu marido para enterrá-la e depois me trazerem para casa. E foi entre lágrimas que a ouvi me contando, logo que chegamos, que ela tomara a iniciativa de batizar a minha filha antes que fechassem o seu caixãozinho. Foi então que lhe revelei que eles tinham sido escolhidos, desde o começo, para serem nossos compadres, batizando nossa filhinha.

Por que me lembrei da Antonia, há pouco, quando li aquela mensagem em pps? Porque ela falava do amor verdadeiro, o amor que existe entre pais e filhos, irmãos, marido e mulher, amantes, amigos. A mensagem destacava que o amor é único, que não existe dois ou mais tipos de amor e que a única diferença é que o amor entre homem e mulher, entre casais, é que, neste caso, há o sexo, mas o sentimento verdadeiro é tão gigante quanto os outros amores que sentimos.

Quando li isso, lembrei da amiga-irmã que tanto amo. Naquele dia que ela batizou a minha filha, ao descobrir que seria a madrinha de qualquer forma, ela fez questão de me dizer que nunca me convidara para batizar os seus filhos porque ela e o João sempre comentaram que entre nós não havia necessidade de qualquer outro laço para estarmos juntos por toda vida, porque o amor e a amizade que nos prendia eram mais fortes do que qualquer coisa que se fizesse visando nos unir ainda mais. E isso é a mais pura verdade!

Às vezes a vida nos coloca em situações que nos obriga ao afastamento temporário das pessoas que amamos, ora por excesso de trabalho, ora por excesso de problemas, ora por causa da saúde, ora por excesso de compromissos, domésticos ou não.

Por isso, eu e a Antonia não nos vemos com tanta freqüência, mas se passam alguns meses sem nos falarmos, a saudade grita demais e o telefone, instrumento que nos permite minimizar esse bichinho que faz doer o coração, logo é acionado e após alguns muitos minutos de papo, chegamos à conclusão de que precisamos nos ver e já vamos marcando nosso encontro.

Hoje os nossos filhos são adultos, têm suas vidas, nossos problemas são outros, nossas confidências são diferentes. Mas a nossa família é muito maior, pois agora ela tem como integrantes também as famílias dos nossos filhos, genros, nora, sobrinhos, amigos, vizinhos, enfim, somos uma família imensa, linda, onde a alegria e a felicidade prevalecem durante todo o tempo em que estamos juntos, matando a saudade e colocando em dia os nossos papos.

Todos deveriam ter uma Antonia em suas vidas! Bem, ela costuma dizer que todos deveriam ter uma Ivone em suas vidas! Mas o fato é que todos deveriam ter alguém como nós duas temos! E a nossa história, tão linda e tão repleta de histórias, nos dá plena convicção de que nossas almas apenas se reencontraram...

IVONE CARVALHO
Enviado por IVONE CARVALHO em 02/11/2007
Código do texto: T720011