*A lenda do coração que ama

A lenda do coração que ama.

Eu estava lendo o poema Coração Partido, do escritor Carvalho Neto, quando me surgiram alguns pensamentos, não de discórdia, propriamente, mas de curiosidades.

Não há, cronologicamente, uma data indicando de quando veio essa ideia de que nós amamos com o coração. Pelo menos na minha exígua fonte de pesquisas, não encontrei nada a respeito, mas é certo que isso é tão antigo quanto as civilizações pensantes.

Nem mesmo os cardiologistas escapam dessa afirmação pífia, talvez por instinto ou por estarem com o pensamento ligado no “automático”. Neste campo, ninguém escapa, pois os grandes pensadores hodiernos ou do passado sempre fizeram ou fazem uma indelével associação desses termos. Amor e coração são como carne e unha.

É inegável que, quando vamos nos encontrar com a pessoa amada, nosso coração fica aos pulos, batendo descompassadamente. Isso é ainda mais forte na adolescência. Sentimos, ao mesmo tempo, um misto de angústia, desconfiança, medo e insegurança.

Quando corremos ou praticamos alguma atividade física mais pesada, sentimos os batimentos cardíacos subirem, mas isso, nem de longe, traz o mesmo desconforto, quanto o da espera pela(o) namorada(o).

Desde os tempos mais remotos, o amor está ligado diretamente ao coração, especialmente, na literatura, que é seu veículo de divulgação mais eficiente. Até mesmo na Bíblia, nosso livro mais lido, o amor está ligado, de maneira explícita, ao coração. Este é citado mais de cento e cinquenta vezes e o amor em mais de noventa parágrafos. Embora não seja um livro científico, a Bíblia trata de tudo e é, por excelência, um livro de amor. Deus diz expressamente: “Ama com toda a força de teu coração...”“Eu sou um Deus ciumento”. “A boca fala daquilo que o coração está cheio”. “Meu filho, dá-me teu coração...”

Só que, na prática, ó Cara Pálida, não é bem assim...

A primeira luz que me brilhou, contestando essa afirmação, ocorreu-me durante uma aula de Ciências, no antigo curso ginasial. O professou contou que, em algum lugar do mundo, um cego esmolava à porta de uma igreja. Todos os dias, no mesmo horário, passava um homem bom, que lhe depositava uma cédula de valor, trocava com ele algumas palavras de carinho e conforto e depois ia embora, deixando o cego satisfeito. É claro que o mendigo amava aquele homem e o aguardava, ansiosamente, todos os dias. Esse homem generoso, após alguns minutos, retornava em sentido contrário e, ao passar pelo cego, empostava a voz e dizia:

– Cego safado, tu não passas de um trambiqueiro! Todos sabem que tu és um impostor, cego de “araque”! Um dia, a polícia haverá de te apanhar!

Resultado: o cego amava o primeiro e odiava o outro. Como poderia isso acontecer, já que as duas supostas pessoas eram uma só? Alguma coisa estaria em estado ebulitivo, fora do tubo de ensaios. O amor estaria, pelo menos neste caso, mais ligado aos olhos e não, ao coração. O problema é que, ainda que cego, ele amava de verdade os seus familiares.

Outro caso muito comentado no Brasil e que tem fé pública é de que coração de mãe não se engana. Pois sim! Vá acreditando nessa bobagem!...

A Psicologia mostra que isso está longe da verdade. Há algum tempo, duas mães foram chamadas por um programa de televisão, para se encontrarem com seus filhos desaparecidos ainda crianças. No palco, elas estavam com mais quatro rapazes que se diziam abandonados pelas mães e desejosos de encontrá-las. A história fictícia desses outros dois elementos se encaixava perfeitamente com os outros dois de fatos reais.

Depois de uma delonga sem fim, as mães, seguras de seus corações, foram intimadas a escolherem seus filhos. O resultado foi desastroso, se se levarmos em conta que coração de mãe é infalível. Erraram feio e o pior foi que escolheram para si os rapazes mais bonitos. Os dois mais bonitos acabaram sendo filho das duas mães!

Outros corações amaram de forma tão absurda, a ponto de desafiarem a mais arguta inteligência. Cito, como exemplo, o massacre dos missionários católicos pelos índios Guajajara, ocorrido em março de 1900, em Alto Alegre-MA. Além de quatro frades e sete freiras, cerca de duzentas pessoas foram mortas dentro da igreja, sob o comando do cacique Cauiré Imana, o João Coboré. A história, em si mesma, é controversa e há mais de uma versão. Uma dessas tem, como pano de fundo, a ousadia do índio Jauarauhu que invadiu o convento para resgatar sua amada, a índia Perpetinha, que estudava em regime de internato.

Conta-se também que alguns padres e freiras eram padrinhos/madrinhas de muitos índios adultos. Não que isso fosse anormal, o anormal é o que veremos em seguida. Fala-se que os afilhados se encarregaram de matar seus próprios padrinhos, pois assim, eles seriam mortos “com amor”, devagarinho. Se fossem mortos por outros índios, esses poderiam usar de brutalidade! Nesse caso, coração de índio é um tanto quanto selvagem....

Já os transplantes cardíacos só vieram complicar ainda mais a vida dos poetas, como se não bastasse a exploração da lua pelos homens. Um caso muito engraçado foi a marchinha carnavalesca de Manoel Ferreira, Ruth Amaral e Gentil Júnior, conhecida pelo título oficioso de Coração Corintiano, cantada pelo apresentador Sílvio Santos e que é de conhecimento geral: “Doutor, eu não me engano, botaram outro coração corintiano...”

Embora muitos outros casos sejam conhecidos, no ano de 2011, em Cambridge, Inglaterra, o britânico Matthew Green, então com 40 anos, casado e com filho, recebeu alta do Papworth Hospital, depois de um transplante por meio do qual recebeu um coração de plástico.

Para os que acreditam – como eu – que amamos com o coração, isso foi um duro golpe. Fico imaginando a cara da mulher dele, ao ouvi-lo dizer:

– Eu te amo de todo o meu coração, ainda mais que antes!

No reino animal, existe solidariedade até entre indivíduos de raças diferentes. A lista de espécies monogâmicas é extensa, desde alguns primatas como os gibões a aves como araras, papagaios e cisnes, até mamíferos como lontras e lobos. É de se imaginar que esses seres não tenham a mínima noção de que possuem corações batendo de amores em seus peitos, mas ainda assim, são portadores de algum grau de amor.

Hoje, mesmo com base numa análise rasa e crua, não dá para acreditar, ainda que com o mínimo de segurança, na tese antiga, ainda que bíblica, de que o coração ama. O coração ama tanto quanto a bomba de minha caixa d’água, ama a caixa que ela enche!

Eu sou doador de órgãos e, ao contrário da marchinha Transplante Corintiano, espero que o meu coração continue batendo noutro peito, de preferência no de uma pessoa ateia.

Esta é minha forma de demonstrar na morte o meu amor, pois em vida, meu coração não se basta de tanto amar.

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Grato ao Poeta Solano Brum pela delicada colaboração.

MEU CORAÇÃO QUE BATE FORTE,

TEM MOTIVOS POR SUA MANHA...

MEU CORAÇÃO, QUE NÃO TEM SORTE,

POR GOSTAR, NÃO BATE, APANHA!"