Pisque

Cegô-se. Chegou essa altura que não aguentava ver mais nada, mas era preciso coragem, era muita. Procrastinou, as vezes indo aí trabalhar ia pensando como seria ir trabalhar se tivesse os olhos furados. Se tivesse a mão firme de furar os próprios olhos, não poderia mais ver o Samuel, da mercearia. Não veria abobrinha chegar, se tinha ido, e a mão tremia. "Tarde, Samuel". Quando pensou menos nisso e pensou mais em línguas burocraticamente filosóficas, teve tremilique porque não lhe entrava o gosto daqueles termos tão francamente europeus, mas se alguma coisa peneirava, era sempre o sumo ruim, o sentimento de atraso, a depravação mal vivida (que não chamaria depravação). Inssistiu-se, debateu-se, atreveu-se e furou. Voltou a si pois tinha dormido no chão, então levantava e pegava água, mas não tinha certeza se ia beber. Se bebesse era pouco, que a água lhe amargou, e pôs o copo metálico com seu nome gravado na lateral da cabeceira. Pensou se era lógico sentar na cama ou no chão e deu-se ao chão novamente, pois aquilo lhe deixava continuar no sonho. Quando assumia o corpo nu tinha mais medo. Samuel perguntou pra ele o que ele queria e ele tinha medo de pegar a cerveja e sair com ela só. Pegou cebolinha no fundo da geladeira. Sempre pensando em furar os olhos. Se fosse trabalhar de olhos furados, talvez estranhassem, talvez estremecessem, mas talvez lhe respeitassem. Talvez lhe repetissem a ação. Samuel não suspeitava que ele estava nu no quarto, mas não pensava nele, corrigiu-se logo, com aquele aterro de querer, querer e não poder, era isso e não era, mas era outra coisa. Era outra coisa mesmo. Queria sair na rua, mas era muito pouco. Tentou anotar como se sentia, pra usar pra qualquer análise de besta p besta, mas tremia o lápis, escrevia eu eu eu sem parar. Era a ponta do lápis ferindo o papel ao invés do seu olho e o papel invés de aí, dizia mais eu.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 15/03/2021
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T7207130
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