Tive que vir

Sua casa já não estava mais tão arrumadinha.

Seu sapato jogado no chão, folhas secas no jardim e poeira sobre os móveis.

Alguma coisa havia acontecido nos últimos dias porque seu olhar estava frio, suas mãos tensas, seu rosto mantinha um tom sisudo e sério.

Ao ouvir sua voz ao telefone senti um calafrio, uma vontade de buscar no passado algo novo. Talvez resgatar o que sempre era novo, o que sempre ressurgia a cada novo olhar, a cada segundo. Mas eu não tive essa capacidade, não consigo resgatar o que passou, não consigo cavar mais água desse poço. Tenho a sensação que o balde vem sempre vazio... ou que a corda é frágil demais pra suportar o peso e poderá se romper. Ficaria sem o vaso, sem a água. Ou talvez eu já esteja sem água há algum tempo, sempre sentindo sede, sempre sentindo esse balde chegar vazio...

Mas, mesmo assim, eu vim. Eu tive que vir.

Volto a olhar para os móveis. Estão nos mesmos lugares de sempre. Nada foi mudado. O velho chapéu pendurado no hall de entrada. O guarda chuva e o casaco marrom, que lhe caía tão bem, está mais envelhecido, continua lá também.

Na sala de estar um vaso de flores do campo vivas e belas.

Observo tudo e você sai pra buscar água e café. Volta se justificando pela demora e me mostra um quadro na parede pintado pelo seu filho mais novo que está morando na Austrália. Sua expressão ganha novo ânimo quando fala do neto e da sua capacidade de fazê-lo adormecer.

Sentamos na varanda.

Uma leve brisa, vinda do mar, nos acaricia. Olhamos um ao outro, apenas, por um longo tempo. E trocamos um sorriso gentil e amoroso.

Ouvi sua voz como se estivesse em outra dimensão, como um eco vindo do passado.

Falava de trabalho, de liberdade, de autonomia. Não me falou de dores, nem de suas preocupações mais íntimas, mas não era preciso. Estamos todos muito tensos com essa pandemia. Eu também estou.

Sentia uma força estranha em sua presença. Sabia o quanto era intenso e verdadeiro o seu coração.

Gosto de sentir a verdade no coração das pessoas

Saí logo depois do café...trocamos um abraço e no portão ele me agradeceu pela presença.

A sensação de leveza me acompanhou até minha casa e ainda ficou comigo alguns dias.

Algo de eterno fica contido nesses momentos.

Salvador, 15 de março de 2021