Como Lima Barreto, a genialidade de Taiguara

Temporalidade. Taiguara brinca com o tempo nessa música, mostrando, talvez, a continuidade dos fatos, ou o que todos os historiadores dizem quando precisam defender sua profissão: os fatos não ficam no passado. Há uma continuidade, as coisas acontecem por um motivo, seja divino, histórico, econômico, cultural, mas nada é por acaso, as coisas assim estão por um porquê. O gênio da MPB rendeu-se à musicalidade do samba-enredo, e arrisca suas brilhantes linhas de composição à escola de samba Unidos da Tijuca. O samba-enredo não foi para a Sapucaí, e só seria conhecida após a morte de Taiguara, num disco póstumo produzido por Zeca Baleiro, que produziu, tratou e deu uma nova roupagem à obra de arte taiguariana. A própria história do disco nos remete ao começo deste texto, quando falei sobre temporalidade, afinal o disco só foi produzido após sua morte, dando um tom especial a mais na produção. O samba fala de Lima Barreto, e Taiguara faz uma linha cronológica dos fatos. Ele começa contando um pouco da história do escritor brasileiro, nos seguintes versos:

“Treze de maio

Nasceu Afonso Henrique, sem dinheiro

Pai operário

Perdeu a mãe pra mais um cativeiro

Vovó Quirina

Laçada em Moçambique por senhores

Veio menina

Ter muitos filhos e de várias cores”

É claro que Taiguara iria colocar sua particularidade na narrativa histórica: sua criticidade em forma de música, versos e voz. Percebemos na letra que Lima Barreto teve uma infância difícil, e a carga histórica da escravidão estava em suas correntes sanguíneas. O pai operário, provavelmente com situações desumanas de trabalho, sua mãe que foi cativa de sua cultura, língua, credo, história. Talvez a Vovó Quirina tenha sido a mais prejudicada: afinal a palavra “laçada” colocada por Taiguara de forma proposital, nos informa, de forma implícita, como que os negros eram tratados. Desdém. Desumanidade. Como se fossem propriedades, da mais baixa categoria, afinal o grande tráfico negreiro aqui no Brasil barateava o valor dos negros. Além desta palavra que nos trás uma gama de sentido, o autor é mais direto, e brada que ela veio menina, para uma única função: ter muitos filhos, e de várias cores. Temos hoje uma valorização da mestiçagem no Brasil, e ela é benéfica, para que saibamos que temos diversas raízes em nós, e precisamos respeitar todos os povos. Mas essa valorização precisa ser honesta. Foi através, quase que por inteiro, do estupro de nativas e negras que cumpriam o seu “dever” biológico: a reprodução. Parece que as construções históricas designam lugares “pré-determinados” para determinadas parcelas da sociedade, e Taiguara nos mostra muito bem nos seguintes versos:

“Lima Barreto,

Livre mulato

Viu com alegria a abolição,

E com nostalgia sofreu nova escravidão.

Veio a República

Leis inimigas

Nas salas uma vasta comilança

Nas ruas, sem comer, crianças”

Lima Barreto estava livre, mas por que Taiguara afirma que ele sofreu nova escravidão? O que parece uma incoerência, na verdade é uma crítica. No período republicano, não houve nenhuma ação do Estado brasileiro para reintegrar os negros na sociedade, sobrando apenas trabalhos braçais, com pouca remuneração, e situações desumanas de trabalho. Houve também uma tentativa de embranquecimento da população. A imigração de povos brancos foi apoiada pela República. Na verdade, a situação não mudou muito para a população marginalizada da sociedade, as salas continuaram tendo vasta comilança, enquanto as crianças só sabiam do vazio da fome. Com uma consciência histórica apurada, além de um grande talento poético, Taiguara conseguiu conectar vários acontecimentos históricos ao seu cotidiano, veja:

“Hoje esse povo

Que é mulato, branco e preto

Foi feito escravo

Tal como Lima Barreto

Que há muitos anos

Viu racismo em seus irmãos

Sou africano

Sei que ele teve razão

O burguês bebe champanhe

O herói bebe aguardente

E na vida, infelizmente

Quem não luta não é gente

Treze de maio”

O “hoje” ao qual o autor se refere, se trata da dolorosa época em que os brasileiros perderam sua liberdade artística, de imprensa, de expressão, política, de reunião. Essa inesquecível época foi a ditadura civil-militar instaurada em 1964, que torturou, matou e perseguiu opositores políticos. O “hoje” é um tempo sombrio, é o “triste mundo antigo”, nas palavras de Taiguara, onde a arte e a cultura foram ceifadas pela censura e polícia ideológica. A resistência, porém, vinha, também, das músicas produzidas neste período. A MPB ganhou um importante lugar de fala, onde as atrocidades do regime ditatorial eram denunciadas em forma de música. E eis que Taiguara nos mostra uma nova forma de opressão, onde o burguês bebe champanhe, e o herói aguardente. Essa metáfora nos mostra a desigualdade social que ganha alarmantes proporções durante o regime militar, que trás a “nova” escravidão/opressão, tal qual “Como Lima Barreto” sofreu. A saída, no entanto, é mostrada nos últimos versos. É preciso lutar, afinal, quem não luta, não consegue ter seus direitos respeitados e criados. Quem não luta, então, não pode ter direitos básicos de uma vida digna, não é gente.