Na Sexta feira Santa não se pode comer carne.

Sempre achei que na sexta feira santa – de todos os anos – deveria chover. Chover muito. Torrencialmente. Como um choro divino caindo sobre a humanidade pela nossa hipocrisia, desfaçatez e impiedade.

Assassinou-se o Cristo há mais de dois mil anos. Foram os chamados homens de bem daquele tempo, que gargalhavam sadicamente, chicoteavam , faziam-lhe sangrar e lhe davam vinagre para beber nos momentos de exaustão absoluta.

Dia da vitória da perversidade, do sentimento abjeto, da absoluta iniquidade. O mal venceu o bem naquele dia revestido de total tragicidade. A tradição nos conta que, no momento da morte do Cristo, o dia fez-se noite. Infelizmente oportuna demais essa reação da natureza.

E depois veio a construção de uma atitude: não se pode comer carne na sexta feira santa por respeito ao Cristo morto.

Não cabe a mim questionar uma tradição. Respeito sim. Mas o que vale mesmo é a reflexão que podemos provocar a partir daquele festival de barbárie de tempos atrás.

Continuamos matando. Muito, sempre, com aquiescência de grande parte dos ditos humanos. São crianças assassinadas, jovens, mulheres, homossexuais, minorias, negros, indígenas (a propósito, sugiro a leitura de um texto publicado pelo nosso Frei Betto sobre o que se tem feito com os indígenas na Amazônia na atualidade no sentido de lhes retirar o pouco de terra que lhes resta. Texto publicado no Diário do Centro do Mundo em 29 de março último). Morrem os vulneráveis de todos os quadrantes desse país em nome da insânia, da ganância, do machismo e de toda sorte de estupidez dos assim chamados “homens de bem”, que gostam mesmo de exibir armas com o sorriso estampado nas suas rosadas bochechas. E caso não tenham dinheiro para comprar um revólver, esses tais “homens de bem” ostentam a sua preferência eleitoral, o que dá praticamente na mesma.

E depois? Resolvem não comer carne na sexta feira santa.

Sei que Jesus detestava a hipocrisia. Eu também.

Detesto os hipócritas que fazem trabalho voluntário e, na hora do voto, escolhem a perversidade. E rezam. Detesto naqueles que, dois dias atrás, bradavam e escreviam no facebook “salve, salve 31 de março”, “quero a ditadura”, “quero voltar a cantar o hino” (já ouvi isso) e coisas afins. Penso no atual prefeito de Curitiba que afirma que é preciso multar aqueles que derem comida aos moradores de rua. Penso na luana piovani (minúsculo) quando, no dia da infame prisão do Presidente Lula, depositou no chão uma maçã argentina, fruta que ele sonhava em comer quando criança na sua distante terra natal.

Penso nos assassinos de crianças, de mulheres, de homossexuais, de moradores de rua. Penso nos funcionários do carrefour (minúsculo e que jamais voltarei a pisar em uma das suas lojas). Penso no veio da havan e centenas de cínicos exploradores, no coiso que, todos os dias, mata prazerosamente e desdenha de multidões e retira seus direitos mínimos. Até da Farmácia Popular ele teve a petulância, a insânia, de tirar direitos sobre medicamentos de uso contínuo para doenças crônicas.

Hoje essa cambada deve estar comendo peixe. Não pode comer carne! Como se isso fosse suavizar suas almas!

Há tempos o brasileiro médio não come carne. Ela está sendo destinada à exportação porque o Real foi a moeda que mais se desvalorizou no mundo graças à demência e o entreguismo dos ocupantes do poder. Para nós pouco sobrou. Não há dinheiro para comprar carne. Simples assim.

Hoje será que essa corja toda está comendo salmão? Será que, pelo menos, alivia um pouco as suas almas?

Tenho certeza que não.

P.S. Eu me lembro, alguns anos atrás, de um padre muito humilde dando uma palestra para nós, professores. Ele tinha um jeito simplório, muito simpático e pertinente. Contou o caso de um fulano, um fazendeiro, que gostava de chicotear seus opositores do meio rural. Chegou até a chicotear um rapaz no rosto, provocando marcas profundas para toda a vida. Quando o infeliz e boçal estava para morrer, chamou esse padre. O fulano estava desesperado, se debatendo, com muito medo do que viria, querendo se confessar.

O padre apenas perguntou: “chegou a hora de acertar os ponteiros?”

Eu sempre me lembro disso. E rio.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 02/04/2021
Reeditado em 02/04/2021
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