Eduardo Marciano, a falta do pão de cada dia e otras cositas más

Semana de feriadão. Sim, eu sei que é estranho falar em feriadão quando passamos todos os dias em casa. Em tempos de pandemia, quando os dias – e, por conseguinte, as noites - são todos iguais, feriadão é feito olho azul em gente feia. Mas, apesar da inutilidade, oficialmente meu feriadão começou na quarta-feira.

Quarta-feira que, noutros tempos, teria a Procissão do Encontro. Mas, em tempos de restrição à circulação de pessoas, os fiéis não puderam ver o tradicional encontro de Maria e Jesus. Assim como no ano passado. Apenas soaram os sinos na matriz. Ou isso foi na noite de quinta? Vai saber, já que tudo parece tão igual...

Mas na quarta, enquanto a maioria estava reclusa, teve gente ousada batendo perna – e continência – por aí. Vestidas de patriotismo, essa gente de bem saiu às ruas em grupinhos, tipo aqueles que a molecada formava depois da aula para tocar campainha, implicar com o nerd da sala, azucrinar a vizinhança... reunida, essa brava gente tomou ruas e praças para comemorar os 57 anos da ditadura militar (ops, movimento revolucionário, para usar o jargão daqueles cidadãos de bem). Se vivo, tenho certeza que Simão Bacamarte os levaria para uma temporada na Casa Verde. Eu até pensei em escrever uma carta para Gotham City e solicitar ao Batman que levasse esses cidadãos de bem para uma visitinha ao Arkham... mas impedido de sair de casa sequer para postar uma mísera carta, posterguei meu intento para ano que vem.

Na quinta, depois de ver mais uma crônica minha publicada na revista Vicejar, sentei à varanda para um encontro marcado. Com o Sabino nas mãos, me perdi nas desventuras e angústias de Eduardo Marciano. Um livro de muitos encontros em bares, de desencontros em festinhas regadas a bebida e otras cositas más nos apês do Rio, com gente zanzando livre, leve e bêbeda pelas ruas de BH, com longas viagens de trem pelas serras de Minas... confesso que em tempos de isolamento me incomoda ver tanto movimento ao ar livre, tanta gente reunida. Não direi que me dá nostalgia, porque não posso sentir falta do que não vivi, isto é, da vida noturna e boêmia que Marciano, Hugo e Mauro levam em Belô. Mas, a seguir a risca o que diz outro personagem do livro é possível, sim, sentir falta do que não se viveu... melhor deixar pra lá, antes que isso aqui vire uma palestra do Karnal.

Começaram a vacinar a turma dos sessenta e poucos anos, mas na sexta já circulava uma postagem da prefeitura suspendendo a vacinação agendada para o sábado. O motivo: falta de vacinas. No DF, um comandante da PM furou fila para ser vacinado; na cidade natal de Marciano, uma falsa enfermeira vendeu vacina igualmente falsa para empresários e, por aqui, não pudemos comprar pão. Segundo o decreto vindo lá das alterosas, e ratificado no Paço Municipal, padarias não podem abrir. Ficamos, assim, sem o pão nosso de cada dia na sexta, no sábado e hoje. Por isso, se a crônica lhe soa longa, querido leitor, é porque este que vos escreve tem fome; e, na ausência de pão, tenta se alimentar de palavras. Se Darwin estava certo, caminhamos para um novo estágio da evolução... vem aí, o homem devorador de letras. Aguardem.

O Prata dedicou a crônica deste domingo aos fungos. Confesso que me deu uma fominha... daí passei para a coluna da Fernandinha Torres. Coitada, anda ressentida com certo Hildebrando que lhe escreve ofensas. Enquanto uns evoluem, a maioria “involuiu”, querida. Já me acostumei com essas criaturas: ao longo da semana tive vários comentários atacados por essa turba... Penso até que são os mesmos que, ainda outro dia, saudaram uma enorme caixa de cloroquina, fizeram loas aos generais da ditadura, embarcaram na canoa furada de um certo mito e que, um pouco antes, gritaram “tchau querida” abraçados a um pato horrendamente amarelo na Augusta... É, acho que vou ter que enfrentar a fila do correio e postar a cartinha pro Batman. Não vai ter jeito.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 04/04/2021
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