DEMOCRACIA

A imagem dos comícios está perfeita em minha memória. Consigo ouvir o tom melodramático dos discursos. Meu pai, um pessedista apaixonado, mais do que fanáticos torcedores do Flamengo, me levava para a torcida contra a UDN.

Aquele espetáculo me parecia dantesco, e eu nem sonhava saber da existência de Dante, e de seu Inferno. Por que aqueles senhores esbravejavam? Que língua era aquela? Por que suavam? Por que esticavam os braços balançando e apontando para o céu? Que espécie de religião era? Por que os oradores acentuavam e esticavam as sílabas tônicas? Por que tremiam o queixo como os tenores e os cantores de guarânias? Por que escancaravam a boca mais ainda do que Vicente Celestino cantando O ébrio? Por que a multidão batia palmas e gritava já ganhou, já ganhou?

No período da adolescência, o Atheneu me ensinou a compreender o episódio político-partidário que marcou a minha infância. “Ensaiei” escolher um “time” pelo qual torceria. A influência paterna prevaleceu. Quando peguei gosto, a revolução de 64 entrou em campo, bagunçou as jogadas, encerrando violentamente o primeiro tempo.

Muitas coisas aconteceram, quase fui parar numa colina. O inverno (eu disse inverno!) foi rigoroso.

Figueiredo lustrou as botas, montou em seu cavalo, tomou tenência e marchou para autorizar o segundo tempo. Antes, avisou ao público que não confiava naquela partida.

Reiniciou o jogo (como diriam os cronistas esportivos). Ali pelos 15 minutos, depois de algumas trapalhadas dos pernas-de-pau, entrou em campo um juiz bonitão. Ele era (é!) bonito, mas o jogo piorou. As torcidas unidas chamaram o juiz de ladrão e de filho de mulher poderosa. Incrível, cartão vermelho para o juiz! Teve gente que morreu e gente que viu a alma de Getúlio em reunião com as de Tancredo e de Ulisses.

Ajustes pra lá, ajustes pra cá, faltou energia no estádio. A imprensa ficou mais pê da vida.

Eu também vejo fantasmas: os comícios, Conrado-que-virou-pipoca, Luiz Garcia, Euvaldo Diniz, Leandro Maciel. Em versão atualizada, eles estão nos showmícios. Dante está na lanterninha com o seu Inferno ultrapassado. Aliás, um paraíso turístico se comparado aos showmícios.

Caminhões de som, raios laser, fogos de artifício, um coro de vozes candidatas tentando se sobrepor ao inferno moderno (rimou!) da lataria e das guitarras ensandecidas; o povão agitando, a feira fumegando; os malandros agindo enquanto a sirene policial avisa estar chegando (dá uma chance aos malandros, as cadeias estão entulhadas). As ruas forradas de papel, bandeiras e camisas fazem chorar os defensores do meio ambiente. Nas calçadas-bares, os barulhentos freqüentadores apostam e torcem, ao mesmo tempo, pelo futebol na TV e pelos candidatos no palanque. Na hora determinada para a liberação do álcool é que as “águas vão rolar” e o aparelho de TV vai cair de cima dos engradados. O proprietário do bar será preso por agredir os clientes. Quando a ressaca passar, os bebedores unidos que jamais serão vencidos organizarão cota para pagar o aparelho quebrado, pois não querem ficar excluídos do ponto preferido.

Com o ingresso na mão para o espetáculo da terceira idade, tenho uma alegre surpresa. Obrigada, meu Deus. Até que enfim o Bem vence o Mal: levou sumiço o showmício. Obrigada a todos. Mas... ainda falta! Tem que proibir mais. Não é proibido proibir!

Para as campanhas basta a mídia. Sonho com uma época que não alcançarei, aquela em que o patrão (o povo) saberá escolher seus empregados (todo o poder emana do povo esclarecido); quando esse mesmo, povo terá educação, moradia e saúde de comprovada qualidade; e excelentes salários.

Democracia não quer dizer tomar conta do dinheiro público e decidir oferecer aos proprietários desse dinheiro alguns brindes de aniversário pobre.

Democracia é ter dinheiro para poupar, e também para gastar. De maneira responsável, da livre escolha de cada um. E prazerosa também, que ninguém é de ferro.

Democracia não significa assistir passivamente à felicidade de poucos escolhidos, significa ser feliz também. Sabemos que jamais todos os indivíduos de uma sociedade serão felizes ao mesmo tempo. Mas coisa alguma deve impedir cada um desses indivíduos de tentar alcançar a felicidade.

Aju, 01/10/2006