JOGANDO CONVERSA FORA
              (PÃINAS E MARCELAS)


Uma das coisas de que mais gosto, sem dúvida, é fazer caminhadas - longas caminhadas - pelas estradinhas e carreadores de mato.
Vou registrando tudo o que acho interessante (haja pilhas! rsrs...) e no retorno editando quase tudo o que fotografei.
Posso até ser considerado um velho chato, mas não curto estas incursões de turmas de fotógrafos e seus bla...blá...blás...
Prefiro a minha suposta solidão e nela o reencontro comigo mesmo.
Nada me parece mais agradável que sorver da natureza,os seus ecos, seus cheiros, trinados, enfim...
O farfalhar das araucárias, dos plátanos, o vento trazendo recados de mundos distantes...
Um galo cantando à distância, um cacarejo, o balir das cabras e ovelhas...
A placidez do gado pastando o silêncio das campinas, um tico tico entranhado e até o lamento de um gavião nas alturas.
Isso é algo que não tem preço ! E num desvão e outro mata a dentro, vão surgindo ângulos que só mesmo a mão de Deus pode direcionar.
Ontem (21/04/21) foi assim. Mais de tres horas pelos mesmos caminhos por mim já tantas vezes percorridos e uma emoção nova a cada clic.

A certa altura deparei-me com alguns arbustos que remeteram-me à ternas lembranças.
Primeiro, touceiras floridas de marcelas do campo (ou macelas,como muitos a conhecem).

Por instantes revi as mãos de vó Maria preenchendo pequenos travesseiros com aquelas flores de odor levemente adocicado, cuja finalidade era "acalmar os nervos", curar dores de cabeça, relaxar as tensões, enfim...
Senti o cheiro místico das tardes nos quintais de minha infância , o aroma das marcelas ardendo em combinações com alecrins e outras ervas (Tia Lucinda adicionava algumas pedrinhas de incenso bento) e naquela espécie de aldeia onde meus pensamentos teciam sonhos, as poucas casas daquele vale incensavam-se a odores que transmitiam paz.
O dia esmaecendo, entregue aos afagos da noite e
a silhueta esguia de minha vó paterna apoiada ao cabo do rastel, com olhares divididos:
Ora à fogueirinha que ardia num canto do terreiro, ora às estrelas precoces que piscavam por trás dos perfis enegrecidos do arvoredo.
Eu... ali.
Tão calado quanto ela.Voejando em divagações, idealizando luzes e cores de algum lugar que um dia haveria de conhecer.
O burburinho de cidades que eu só via em revistas.
Quase escondido pelas pereiras, o retângulo da janela de nossa casa, com frouxa luminosidade, delatava o cheiro das batatas fritas num convite irrecusável para jantar.
Mal saio do "transe"...
Ao redor do carreirinho, uma touçeira de "Pãinas", no ponto exato de colheita.

Vêm à memória a figura de dona Maria Coronha, com aquele seu olhar meio soturno e um sorriso que me causava medo.
Vinda de muito longe, batendo chinelos, pisando a poeira e o sol dos caminhos das lavouras, atirava-se numa cadeira e pedia um copo d´agua para atenuar o cansaço.
Pernoitava em nossa casa e deixava num canto qualquer da moradia os quatro sacos de pãina que trazia às costas para comercializar na cidade.
O volume era imenso,o peso era pouco.
Subitamente uma rajada brusca de vento e tufos daquele arbusto voam pelos ares.Os acompanho até perde-los de vista.
Era como que dona Maria estivesse ali, ao meu lado. Algo como que fosse um recado da boa velhinha, que me adulava e cujo sorriso por vezes me assustava.
Aquela figura meio sinistra veio-me nítida à lembrança degustando feliz um prato de coalhada com marmelada num canto da mesa, a voz quase gutural proferindo uma de suas frases de efeito: "Um prato desses, só pode ser coisa de Deus ! Abençoada vaquinha ! Bendito marmeleiro !"
Depois, as orações e o plac plac do chinelo subindo os degraus que levavam ao sótão.Era lá o seu cômodo.
Na sequência, as crises de tosse e as recomendações: Escove os dentes e reze antes de dormir, ao que minha vó acrescentava:
Ouviu "os conseios" piá de bosta.
Faça isso e chispa pra cama.
Um abraço,com cheiro de naftalina, um chamego e mais uma noite à minha disposição.
Ah! Essa chatiçe de véio saudosista...
Meu Deus ! Até quando ?
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