INDEPENDÊNCIA OU MARTE

O programa espacial que almeja “conquistar” outros planetas é por muitos considerado um grande progresso para a humanidade. Eu enxergo diferente. Em minha modesta opinião de terráqueo, as viagens espaciais denotam, isto sim, um fracasso da relação do ser humano com a fonte primordial de sua existência, o planeta Terra.

É como se esse afável astro, que por tantos milênios ofereceu acolhimento para o ser humano fosse agora por ele preterido. Comporta-se este como um filho ingrato que despreza aquilo que a mãe-Terra tão abnegadamente lhe concede, insuficiente para satisfazer sua desmedida ambição.

É como um marido infiel que, embora tenha o mundo (literalmente) para si, entediou-se com os atributos femininos que a formosa Terra tem-lhe a proporcionar. E trai sua devotada companheira, “pula a cerca”, buscando “aventuras” no espaço sideral.

Vã procura pois os outros planetas do sistema solar ou os que orbitam estrelas “próximas” são inóspitos e hostis à vida. Não há neles, ao que se saiba, nada que seja compatível com as necessidades do ser humano. É preciso neles criar condições absolutamente artificiais de adaptabilidade, “tirando leite de pedra”. Ou seja, definitivamente, não foram feito um para o outro.

Pode-se sonhar que, em algum canto do universo, a um punhado de anos-luz de distância, haja um lugar idílico, em que se possa reviver o éden de Adão e Eva sem a presença de serpentes. Devaneio esse que impede que o ser humano enxergue que o paraíso de fato já existe. E está bem ao seu lado! Ao nos afastar em direção ao infinito espaço, o retrovisor revela que o verdadeiro shangri-lá foi deixado para trás, no magnífico astro azul que visto à distância destaca-se por sua deslumbrante beleza.

Líderes espirituais como Jesus e Buda já alertaram (sem serem compreendidos) que o reino de Deus e o Nirvana estão aqui mesmo, a nosso alcance. Mas nem testemunhos tão qualificados são suficientes para convencer o teimoso homem a desistir da inglória empreitada planetária que, mais do que desafio, virou uma obsessão.

Quando digo “homem”, por extensão, entenda-se que na verdade refiro-me especificamente ao indivíduo inserido neste determinado sistema político e social que infelizmente está se tornando globalizado. Pois, ao que saiba, essas características não vigoram em culturas ditas “primitivas” e povos ancestrais. Em tais comunidades não parece haver qualquer anseio dos indivíduos em abdicar do habitat em que milenarmente se inserem.

Os povos indígenas isolados, por exemplo, vivem em completa integração com o ambiente que os cerca ao qual adaptaram suas práticas e costumes com perfeição. Não lhes passa pela despoluída cabeça essa ideia estapafúrdia de sair vagando por aí em busca de outras paragens, exceto se forçados por uma circunstância excepcional. Tampouco cogitam construir custosas naves desperdiçando recursos, tempo e energia que poderiam mais proveitosamente ser utilizados em benfeitorias para a própria comunidade que habitam.

Por que adotam eles essa incompreensível atitude de se conformar com o “pouco” que têm? Talvez porque neles haja a percepção de que não faz sentido buscar em outros recônditos o que não lhes falta: o maravilhoso êxtase da existência presente no “aqui agora”, oferecido como bênção celestial por seus deuses.

Parece que a obstinação sideral, a insatisfação cósmica de querer sempre mais e mais é característica exclusiva da “evoluída” civilização ocidental, fruto dos valores enaltecidos pela arrogante ética judaico-cristã que produziu esse sistema econômico depredador.

Alguns podem objetar que foi esse louvável inconformismo que impulsionou o homem a criar invenções e desenvolver uma ciência utilitarista que proporcionou felicidade ao ser humano.

“Mas a que felicidade te referes, cara pálida?” Todo o progresso científico não parece ter sido capaz de levar seu mentor a atingir o estado divino da alma.

Pergunte-se às pessoas de nossa sociedade se atingiram a tal de “felicidade”. Não preciso de pesquisas de opinião para afirmar que a imensa maioria responderá sem pestanejar: “não!”. Aumento de depressão, estresse, desesperança, altas taxas de suicídios, consumo crescente de medicamentos, drogas e álcool que nos afastam da penosa realidade são demonstrações inequívocas de que a felicidade vem se tornando uma meta cada vez mais inatingível. Buscam freneticamente prazeres exteriores mas são incapazes de um simples gesto de olhar para dentro, confrontar sua angústia e indagar-se honestamente: “O que realmente importa nessa vida?”

Não nego que a ciência tenha disponibilizado conforto, abundância e maior número de anos de vida, que nos dão a falsa impressão de que somos mais felizes. Ouso dizer que ocorre exatamente o oposto. Esses “benefícios” trazidos por nossa civilização são iniciativas para escamotear a decepção de quem não consegue achar motivos reais pelos quais vale a pena viver. Por isso, a felicidade é procurada em prazeres fúteis que, ao serem propiciados, revertem-se em novos desejos indefinidamente.

Parecem eles, no entanto, nos afastar cada vez mais da plenitude que na verdade está nas coisas singelas do dia a dia. O sorriso de uma criança, o afago a um cão, as relações de amizade, os encontros familiares, o contato com a água do mar, o banho de cachoeira, a liberdade de poder correr livre num campo imenso, o esplendor de uma paisagem exuberante, o espreguiçar pela manhã ensolarada, o trocar palavras de amor ao luar. Coisas banais que nos tornam repletos de júbilo pois se conectam a nossas necessidades primordiais. Ao contrário do prazer postiço de se acumular dinheiro ou adquirir o modelo mais sofisticado de carro e celular.

Para proporcionar tais bens materiais, nossa civilização explora (no sentido mais vil da palavra) as dádivas que a Natureza nos oferece gratuitamente, tornando-as mercadorias, expostas em gôndolas de supermercados e vitrines de shoppings. Para tanto, extrai até o limite o planeta a ponto de torná-lo inabitável. Espécies foram dizimadas, florestas e rios arrasados, o meio natural totalmente desfigurado. Esse modelo autofágico parece estar nos levando a um destino trágico em que a vida humana está se tornando inviável.

Não havendo mais o que e de onde tirar nesse planeta, o homem ‘civilizado’ sai como gafanhoto em busca de outros lugares no universo que possam ser rapinados para que expanda para outros mundos sua sanha insana de apropriação e destruição. A espoliada e esgotada Terra cada vez tem menos a oferecer.

O homem dito civilizado que presunçosamente se julga tão sábio, esnoba as culturas primitivas que aceitam humildemente como uma bênção o que a Natureza lhes deu. Julga-se superior aos animais ditos “irracionais” que vivem harmonicamente com o meio natural sem nada exigir. E para provar sua supremacia impõe com violência suas crenças e submete os “mais fracos” a seus valores.

Já não seria hora de repensar nosso modelo predatório de civilização baseado no TER ao invés do SER? E questionar se “progresso” é de fato mais importante do que “felicidade”?

O bilionário programa espacial é apenas um corolário desse modo insensato de agir.

sergio sayeg
Enviado por sergio sayeg em 30/04/2021
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