Meus 25 anos de bibliotecas

Completo neste ano as minhas bodas de prata – eu e as bibliotecas, casamento feliz que teve início há 25 anos, quando eu ainda era um garotinho que cursava a terceira série. A partir daquele ano, íamos à biblioteca da escola toda semana para escolher um livro para ler. Havia um dia determinado para ir à biblioteca, mas às vezes eu terminava de ler rápido demais e ia trocar de livro antes. Já naquela época eu gostava do próprio ato de ir à biblioteca tanto como o de ler. Era legal folhear os livros lá, ficar indeciso sobre qual levar, já que não podia levar todos eles.

Ainda tenho as fichas de empréstimo daquele primeiro ano de relacionamento com as bibliotecas. Foram 38 livros lidos, muitos da coleção “Salve-se quem puder”, que foi um enorme sucesso na minha sala, com aventuras que exigiam que o próprio leitor solucionasse um enigma a cada página. Mais tarde, li a coleção “Calafrio”, da ótima Stella Carr, e essa eu descobri sozinho, era o único da sala que lia a Stella.

Permaneci muitos anos na mesma escola, de modo que frequentei bastante essa biblioteca, o que inclui as vezes em que me reunia com colegas para fazer trabalhos (era um tempo anterior ao Google). Quando cheguei ao Ensino Médio, tive que trocar de escola e de biblioteca. Dessa outra biblioteca, marcaram-me as leituras de Hermann Hesse e Anthony Burgess. Era uma época em que a Internet começava a se tornar popular, então essa biblioteca já era menos utilizada.

Ainda nessa época, eu e minha mãe passamos a pegar livros na biblioteca pública da cidade. Ali eu descobri o Dom Quixote, aos 16 anos, li o Machado completo, aos 17 anos, e encontrei um dos sentidos da minha vida ao me deparar com o Rubem Braga. A biblioteca da cidade também forneceu os livros que eu precisava ler para o vestibular (tinha Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Dalton Trevisan...).

Passei no vestibular e me mudei para Curitiba. Ali havia a famosa Biblioteca Pública. Queria correr até lá para fazer uma ficha, mas sabia que exigiam o comprovante de residência que eu ainda não tinha. Confiava que chegaria alguma correspondência para mim até o sábado e então iria lá. Chegou no próprio sábado pela manhã! Corri à biblioteca e fiz a minha ficha, que é como tirar a cidadania. Só sou cidadão das cidades em que tenho uma ficha na biblioteca.

Havia ainda a biblioteca da faculdade, usada bem mais para trabalhos, mas, ainda assim, foi nela que eu descobri o Kundera. Fiz ficha ainda em uma biblioteca perto de casa (ali, o primeiro Dostoievski, o primeiro Tchékhov). Minhas leituras dependiam dessas bibliotecas, porque eu não tinha emprego, não tinha dinheiro para comprar os livros.

Fui arrumar emprego só em Brasília. Lá eu fui frequentador da Biblioteca Nacional, inaugurada há pouco tempo e que, imaginem, não tinha livros. Era um problema de licitação. Eu ia a essa biblioteca para usar o computador e enganar a solidão. Depois vieram os livros, lá eu peguei muitos clássicos e descobri o Hélio Pellegrino. O ruim é que havia muita coisa estragada nessa biblioteca.

Também era o problema de outra biblioteca, a Demonstrativa, a maior de Brasília, que chegou a ser interditada por muito tempo. Ali eu fui muitas vezes antes de um final de semana, antes de um feriado, já que os livros seriam a minha programação. Era uma biblioteca muito frequentada por concurseiros, que não leem por prazer, mas por necessidade. Quanto a mim, aproveitei essa biblioteca para ler todo tipo de cronista que me aparecesse pela frente, sendo que o meu melhor achado foi mesmo o Nelson Rodrigues.

E teve a Biblioteca Pública de Brasília, que era mais perto de casa, e onde fui fazer ficha no dia do meu aniversário, porque me deram a manhã de folga e ir a uma biblioteca era uma forma de comemorar. Ali eu deixei muitos dos meus livros quando voltei para Curitiba e não podia levar muita bagagem.

Desde então, frequento mais a Biblioteca Pública do Paraná, onde consigo achar raridades dos anos 60, 50, até livro dos anos 40 editado em Portugal eu já achei. Sem ela, seria bem mais difícil manter os meus “anos temáticos” de leitura. E o legal é que ali você pode pegar um livro antigo de um escritor obscuro que, mesmo assim, é grande a chance de ver que ele foi emprestado várias vezes nos últimos anos. Sente-se que ali se gosta de ler, ali a leitura é valorizada.

Livros ainda são mais caros do que eu posso pagar, então, sem as bibliotecas, eu leria bem menos, e em algumas épocas não leria nada. Devo muito a cada uma delas e de vez em quando tento saldar um pouco da dívida doando livros, pois, se há tantas bibliotecas por aí, não é preciso que eu tenha uma só para mim em casa. Que os livros circulem por aí!

Completo 25 anos de feliz matrimônio com as bibliotecas em um momento complicado. Faz mais de um ano que a Biblioteca Pública do Paraná está fechada por causa do coronavírus e eu tenho que me virar para cumprir as minhas metas de leitura. Que a pandemia acabe para que as pessoas possam enfim se abraçar, se beijar, sair e comemorar sem medo, sim, mas, também, para que voltemos às bibliotecas.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 02/05/2021
Reeditado em 02/05/2021
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