Ordinária!

Quando escuto os paladinos da moral e dos bons costumes expressarem sua indignação com o funk e suas variações que a garotada curte hoje, como o brega funk, ou ritmos menos conhecidos, a exemplo do trap, eu fico a pensar com meus botões, com vontade de falar, mas com preguiça de discutir. Escrever é mais fácil. Muitos da minha geração reclamam da falta de cultura dessa meninada nascida a partir dos anos 2000, da vulgaridade do vocabulário, dos shortinhos das meninas. Parecemos nos esquecer de que fomos crianças na década de 90 e das barbaridades que víamos na televisão.

Nem só de Chiquititas, Carinha de Anjo e Disney Cruj nós que fomos crianças nos anos 90 vivíamos. Havia o Bonde do Tigrão e o cerol na mão; havia o É o Tchan e a dança da boquinha da garrafa. Lembro de uma professora, na terceira série, que nos deixava dançar na sala de aula, no último tempo, às sextas-feiras. Ela própria colocava uma garrafa (de água!) no meio da sala e fazia uma fila, da qual chamava um por um para "ralar" na boquinha da garrafa. E nós ralávamos felizes, naqueles mágicos segundos de fama. Não passava pela nossa cabeça que aquela inusitada dança aludia ao ato sexual.

Boa parte de nós que já adentramos a casa dos trinta pertence ao grupo das “pessoas normais” (não vou usar o termo cidadãos de bem por razões óbvias!). Estudamos, temos emprego, vida estável, filhos, pagamos nossos impostos. Não nos tornamos mais ou menos degenerados do que as gerações que nos antecederam ou as que nos sucederão. Parece haver uma lei natural que mantém estável o número de pessoas medianas na sociedade, nem santos nem demônios, permitindo que o status quo perdure. Não posso imaginar quão louco seria o mundo formado somente por Madres Teresas ou Marilyns Mansons.

Antes da simpática Dora Aventureira e sua interação com os pequenos telespectadores, existia um controverso personagem amado por onze em cada dez crianças: o Pica-pau. O endemoniado pássaro passava a perna em quem ousasse cruzar seu caminho, com direito a rituais de vodu, tentativas de homicídio no inesquecível episódio do Barbeiro de Sevilha e inconvenientes demonstrações de atração física por belas dançarinas. Não ficamos piores por causa dele; antes, acredito que o danado nos deu boas dicas de sobrevivência para a selva que é o jardim da infância.

Programa de família nas tardes de domingo era assistir ao icônico quadro da Banheira do Gugu, em que homens e mulheres em trajes sumários se engalfinhavam disputando escorregadios sabonetes. Não esqueçamos também que as mesmas moças que estampavam as capas da Playboy e da Sexy eram ao mesmo tempo adorados ídolos infantis, com direito a bonecas, tamancos, sandálias e álbuns de figurinhas. Ou vamos negar que ficávamos, às vezes, sem o lanche na escola para gastar nossas moedas com chicletes da Tiazinha e da Feiticeira?

Quem nunca ficou acordado até mais tarde, escondido dos pais, para assistir ao Teste de Fidelidade do João Kleber que atire a primeira pedra! Já sentíamos umas coisas na carne que na época talvez nem suspeitássemos tratar-se do despertar de nossa libido. Era um pornô soft, sem genitais à mostra, interrompido nos momentos mais sugestivos pelos gritos do apresentador chamando os comerciais. Claro que era combinado, mas quem se importava? Não tínhamos acesso aos sites de domínio .xxx como hoje.

É sintomático da idade avançada bradar a batida expressão “no meu tempo...!”, em tom de reprimenda. O saudosismo da infância nos engana: gostamos de nos imaginar mais castos e inocentes do que éramos de fato. Os meninos que hoje dão sarradas no ar também se espantarão com a “falta de cultura” de seus filhos e netos, tal qual nossos pais e avós se espantavam quando nos viam dançar com desenvoltura as coreografias das Sheilas e da Carla Perez, aos gritos de “ordinária!” do ‘Cumpadi’ Washington.

Sabe de nada, inocente!

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 03/05/2021
Reeditado em 03/05/2021
Código do texto: T7247577
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