Abril

Juro que foi acidental. Eu pousei a xícara de café sobre a mesa de estudos quando tocava, no computador, uma música instrumental de viola. De costume me virei para olhar a serra que fica atrás do bairro Bela Vista. Seu tom azulado, ainda com resquícios da neblina matinal. Mesmo em terras quentes como estas o outono já cumpre seu papel.

Esse conjunto de coisas foi fatal. Destroçou-me como bomba. Não foi propriamente saudade. Não sei bem explicar o sentimento que me veio... Sabe aquele friozinho na barriga que a gente sente quando o carro desce um morro muito rápido? Parecido com isso, só que estendido. Já tem mais de meia hora e ele ainda está aqui.

Então percebo que é final de abril e o chão foge aos pés, como nos filmes de ficção. É hora de mais uma memória involuntária.

Estou na porteira do sítio, pintada a óleo queimado. A serra de Furnas – sempre ela! – azulada. As fileiras do cafezal. Tenho uma ansiedade estranha, uma euforia. Será a pressa de viver? Não me cabe, da altura do agora, avaliar, mas sim deixar que eu mesmo, lá das lonjuras do sentimento, diga, expresse, demonstre de algum modo o que se passa.

Um corte. Marteladas na construção vizinha à minha casa... Som de caminhão. Preciso integrar isso tudo no quadro da lembrança, antes que ela fuja. Consigo! Meu pai trabalha no barracão. Sim! Ele está reformando a cerca que a novilha quebrou. Vêm daí as marteladas. O caminhão? É o Ricardo, caminhoneiro que recolhe leite. Seu caminhão turbinado passa lá na estrada que vem da Cachoeira da Laje. Chego a ver a fumaça.

Pronto! Posso voltar à porteira. A serra, o cafezal, a euforia suave no peito. Paixão de infância? Vontade de que cheguem as festas de junho? Estou quase lá...

Nova interrupção. Agora são passarinhos na grade da varanda que me desviam. Hoje está difícil segurar o fio da memória. Vou integrá-los também. É fácil! Os passarinhos estão na cerca que divide nossas terrinhas das terras do João Maia. Gosto de brincar no terreiro da fazenda dele, especialmente quando a família vem nos fins de semana. Jogar bola, ver os rapazes trabalhando e contando histórias, o trator, a máquina de secar café.

Compus o quadro finalmente. A serra, o cafezal, o curral, o caminhão de leite, a cerca de arame, os passarinhos, a fazenda vizinha. Mas a euforia agora se converte em dor. De olhos fechados e respiração lenta enfim entendo. O óbvio. De novo é ela. A buraco no peito é porque no meu quadro de lembrança não apareceu minha mãe. Esperava por ela. Era pra ter me lembrado de algum momento no qual ela estivesse. Não foi dessa vez.

O fio se rompeu. Não adianta forçar mais. Volto ao meu abril de agora. O café esfriou. Que na próxima recordação minha mãe esteja, para que eu a veja, mesmo que pela embaçada vidraça da memória. Porque sua ausência, em certos momentos, é maior que a serra do Bela Vista.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 07/05/2021
Reeditado em 18/01/2023
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