Saudação à Mandioca

Hoje eu quero saudar a mandioca, raiz brasileira, pão originário, maná da terra. A cozinha nacional é quase sempre  associada ao feijão com arroz, nutritiva dupla onipresente hoje em dia nas nossas mesas. Venho causar discórdia ao destronar o feijão com arroz e levar a coroa à verdadeira Rainha da culinária brasileira, Sua Majestade Manihot Esculenta.

Da mítica planta, cuja origem é sagrada para os povos indígenas, tudo se aproveita. O caule, também chamado de maniva, vira forragem para o gado; as folhas são apreciadas na maniçoba, prato famoso na cozinha paraense; da raiz, nem se fala: até o líquido tóxico resultante de seu processamento é aproveitado. Depois de curtido no fogo ou ao sol, transforma-se em preciosa base para caldos e molhos. No Pará, é chamado de tucupi; no meu Ceará, é manipueira, com a qual se faz um delicioso molho de pimenta malagueta e outras especiarias. A variedade mansa da raiz, com baixo teor de ácido cianídrico é aqui conhecida como macaxeira. Frita ou cozida, coloca qualquer batata no chinelo.

As farinhas da raiz da mandioca têm personalidade. Há as amarelas, a quebradinha ( resultado do processamento industrial), a farinha d'água, dentre outras. Já comi muita farinha na vida: na farofa, no pirão, misturada com feijão verde, com castanha e até com mel. Verdadeira iguaria para meu paladar infantil, sobremesa preferida. Arroz, pelo menos para os sertanejos, é hábito alimentar relativamente recente. Nossa base alimentar era mesmo a farinha e o feijão,  não o feijão carioca que vira um papa depois de cozido. Nosso feijão é o de corda. Com rapadura, então! Memórias gustativas me vêm à mente e à boca...

Mas nem só de farinha vive a mandioca. Depois de descascada, ralada e prensada, é lavada em muitas águas pela gomeira, profissional em via de extinção para o infortúnio das novas gerações. Quando a água da lavagem assenta, resta no fundo do tanque o precioso amido, a que chamamos goma, matéria-prima para tapiocas, grudes, bolos e até cola para trabalhos escolares. Funciona bem, garanto. Só quem já comeu tapioca de forno, regada com leite de coco, enrolada como um rocambole, sabe do que falo. Não há pão francês que esteja à sua altura.

Menos conhecido fora do eixo Norte-Nordeste é o beiju, feito da massa crua de mandioca, devidamente lavada e escorrida. Se torrada pelo forneiro, vira farinha, mas pode ser usada crua para fazer beiju, nosso crocante pão que pode ser guardado e consumido por semanas. Há quem confunda beiju com tapioca, supondo-os sinônimos, apesar da maciez desta em contraste à crocância daquele.

Não posso me esquecer da carimã, feita da raiz amolecida e fermentada, deixada de molho por dias. O cheiro da carimã,  ou puba,  como é mais conhecida, não é dos mais agradáveis, confesso. Empesteia a cozinha. Os mingaus e os bolos feitos com ela, no entanto, recuperam-lhe a reputação. São muito saborosos. Quem já comeu o famoso bolo pé de moleque nas festas juninas que o diga.

Além do óbvio valor nutricional e econômico, a mandioca também é (ou era) catalizadora de interações sociais. Farinhadas, para nós, eram uma festa. As casas de farinha demandavam muita gente para o trabalho, desde a coleta da raiz no campo até a torragem e ensacamento da farinha. As mulheres, moças ou casadas, acompanhadas de sua prole, ocupavam-se da raspagem da raiz, etapa fundamental. A paga era conforme a produção. A quanto mais rumas de mandioca davam vencimento, mais ganhavam. As mães de muitas crianças levavam vantagem, pois tinham a ajuda das pequenas e ágeis mãos no manejo das afiadas facas. Cortes não eram raros. Punha-se pó de café ou açúcar no ferimento, amarrava-se com uma tira de pano, e o trabalho continuava.

Gomeiras e forneiros eram profissionais respeitados na hierarquia farinheira, disputados pelos donos das "ca'defarinha". Era preciso muita ciência para saber o ponto certo da extração da goma e da torragem da farinha. Um passo errado punha a produção do dia a perder.

Homens de um lado, na prensa, no forno, trazendo carroçadas de mandioca do campo. Mulheres de outro, sentadas com suas saias amarradas entre as pernas, raspando as raízes, lavando goma, preparando beijus e tapiocas. Desde que o mundo é mundo, onde há machos e fêmeas, ocorre o antiquíssimo ritual do amor, da corte do homem à mulher. Muitos casamentos e adultérios começaram numa casa de farinha, noite adentro, entre olhares tímidos e cheiro de tapiocas. Eu mesma, posso dizer,  sou fruto indireto de uma farinhada. Meu pai aos 17 anos era prenseiro; minha mãe, gomeira. Um mês de farinhada foi suficiente para o prenseiro cortejar a gomeira, que sucumbiu aos encantos do rapaz. Já são 36 anos juntos, entre brigas e quatro filhos já crescidos. Seríamos nós também subprodutos da mandioca?

Peço perdão ao feijão carioca (ou mulatinho) e ao arroz branco, mas eu saúdo sem pestanejar a mandioca, tal qual fez a ex-presidenta Dilma Rousseff, pelo que essa planta representa para nós, alimento para o corpo e para alma, milagre em forma de raiz. Brindemos à mandioca! Com tiquira, por favor.

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 12/05/2021
Reeditado em 12/05/2021
Código do texto: T7254142
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