O Designer

Fora incumbido da tarefa de criar bichos, plantas, biomas, paisagens, céus e terras. Tarefa árdua, convenhamos. Tinha a eternidade para executá-la, mas como bom procrastinador que era, acostumado ao ócio celestial, deixou para cumprir o trabalho nos últimos sete dias do prazo designado. Munido de substâncias psicodélicas para atiçar-lhe a criatividade, começou a traçar rabiscos no ar. Formas irregulares, pontiagudas, retas e curvas deram origem a montanhas, planaltos, planícies e depressões. Átomos mais ou menos espalhados ou comprimidos, coesos ou dispersos, criaram os estados da matéria, os sólidos, os líquidos e os gases, conforme a dança da miríade de visões caleidoscópicas do transe que então experimentava.

Criaturas aladas, coloridas, maravilhosas, apareciam em seus croquis e enchiam os presentes de satisfação. Flamingos, patos-mandarins, araras, pavões e condores ostentavam seus elegantes e sofisticados projetos gráficos. Belas também eram as criaturas do reino líquido, com escamas brilhantes a refletirem a luz solar que penetrava nas águas, assim como também eram belas e exibiam variadas estampas as criaturas da terra, que impunham respeito pela rapidez dos gestos e pela estreiteza da pupila. Pretos, pintados, listrados, peludos, grandes ou pequenos, todos eram belos felinos. Fora feliz na primeira remessa de criações! Acabou, no entanto, o estoque de cogumelos (havia uma plantação no Olimpo!).  Perdeu a noção do tempo, condição a priori no sentido kantiano, a qual lhe era anterior. Avisado foi pelos outros de que o prazo findava, restando-lhe vinte e quatro horas. Esforçou-se sobre-humanamente, com a licença poética da palavra porque humanos não tinham sido criados ainda,  mas um bloqueio criativo enevoava-lhe a cabeça. Que fazer? Reuniu os estagiários, aspirantes a deuses de menor importância, e resolveu fazer um brainstorm.

Sem tempo para revisar a produção de seus pares, mandou tudo para a impressão em 3D, inclusive as suas próprias criações sem a influência do psilocybe cubensis. O desastre foi total. Ao lado das perfeitas criaturas e paisagem da primeira remessa, foram impressas nas oficinas do Além criaturas de design duvidoso: lombrigas, piolhos, baratas, mosquitos, bichos da goiaba, peixes-boi, aranhas e mais uma infinidade de seres venenosos, feios e repulsivos. Dizem que a Austrália, particularmente, recebeu  grande parte das criações da segunda remessa, da qual fazem parte a simpática cobra-marrom e as raposas voadoras.

Correm rumores nos bastidores celestiais de que um possível recall de algumas criações é cogitado. Tal qual sucedeu com os dinossauros e demais representantes da megafauna, e mais recentemente com o dodô e o tigre de java, cujos recalls foram terceirizados, planeja-se o recolhimento e a possivel retirada da linha de produção de certo macaco nu, criatura bípede desengonçada que causa repulsa pela falta de pelos no corpo, semelhante ao gato sphynx. Tal criatura há muito vem causando significativos danos ao zoológico e estação científica Terra, gerando desconforto entre os engenheiros responsáveis por seu projeto. A culpa, claro, foi jogada nos estagiários. Agências de inteligência asseguram que o suposto recall já está em curso desde novembro de 2019 e tem sido bem-sucedido.

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 12/05/2021
Reeditado em 19/05/2021
Código do texto: T7254244
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