Dezembro

Chegou o domingo e fomos aos Olhos d'Água"! Depois da fazenda do Ubirajara, você passa pelo mangueiral e a árvore dos galhos tortos que de noite sopra vento de assombração. Depois da porteira da grande árvore de óleo, lá vai encontrá-la: a Casa da Vó Nica, lugar de tantos encontros dos filhos, netos, bisnetos para a prosa de domingo, o café com biscoito, roda de cantoria, a reza do terço, os casos de assustar menino.

Naquele dia, era o prato principal: frango caipira. Aos poucos chegaram os tios, meus primos e a gente almoçou, entre um caso e outro do Tio Luiz; entre silêncios, dispensando preenchimento.

De tarde foi o terço, na sala, de frente ao presépio que minha tia Noêmia e minha avó montavam todos os anos. Mais vida e mais sentido tinha aquele presépio que todos os que vi em todas as igrejas que passei. Presépios pré-fabricados não tem charme, não tem encanto nenhum, não merecem nascimento de criança alguma. Faz bem o Menino Jesus em passar longe deles.

Dia 6 de janeiro saía a Companhia de Reis, com meus tios de embaixadores, os "contratos" e a "voz fina", que dá à folia um tom melódico, nostálgico e lírico. Quando meu avô vivia, dizem que era ele que batia a caixa. Sempre que a via pendurada no quarto de hóspedes, embrulhada em um saco de linhagem, me dava um misto de medo e curiosidade.

Olhos D’Água. Onde tanto brinquei. Lugar onde o dia passava sem relógio e quando tinha relógio era sem ponteiro. Olhos d’Água porque ali brota por todo canto pequenas nascentes que enchem a represa de Furnas, as cisternas e os pequenos regos que corriam pra bica onde a Vó a lavava o arroz; Olhos d’Água porque ali a gente também enchia os olhos de emoção, de tristeza pelas coisas tristes e de alegria pelas coisas boas, de encantamento nos amores de infância.

Olhos d’Água que a gente escrevia na carta ou no documento com orgulho, mas pra quem vive ali, no dialeto roçaliano, se é perguntado onde vive ou onde nasceu a resposta é apenas: no Zói d’Água. Lugar mítico, místico e misterioso onde moram doces lembranças minhas.

A roça progrediu. A energia elétrica chegou. A TV e suas antenas diabólicas. Tudo mudou. O bambuzal tomou conta do pomar e escondeu as velhas mangueiras e laranjeiras. Brincando entre elas sonhei coisas que ainda busco até hoje. Minha avó há muito se foi. A caixa já não bate. A bica d'água já não corre.

Tem nada não! Memória não tem cerca e de repente lá estou eu de novo! O presépio montado na sala com a simplicidade dos pobres de Javé e a sabedoria dos espíritos iluminados. Dezembro está chegando ao fim. Fez-se uma manhã e uma tarde.

Fez-se mais um ano. E Vó Nica sorriu, porque tudo era bom.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 24/05/2021
Reeditado em 18/01/2023
Código do texto: T7263219
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