Cronicando à moda antiga

Peguei o velho lápis já encardido e descascado pelo tempo de uso, desprovido quase em totalidade de sua fina cobertura verde-escura. Construído à uma madeira macia e bem trabalhada é um velho combatente de escritas, mas que achou que estava aposentado do ofício. Ledo engano desse amiguinho ingênuo.

De supetão, vou até a lixeira que descansa sobre a pia da cozinha carregando-o comigo. Espio o movimento noturno transcorrendo na rua lá embaixo. Os postes, holofotes da cena na saída do perímetro urbano, ora ou outra destacam um transeunte muito bem agasalhado. Deve estar frio lá fora, imagino.

Com precisão, retomo os olhares para meu artefato de madeira com miolo de grafite e saco meu apontador prateado com a mão esquerda. Girando o lápis no sentido horário pela estreita caverna afiada do objeto de metal, vou afinando a ponta cinza-escuro e arrancando as beirolas de madeira branca numa fina camada bem ornamentada.

Estou pronto para abrir aquele caderno de capa dura que descansa há um bom tempo sobre a cadeira. Folheio algumas páginas e ele me conta diversas histórias de uma linha cronológica extensa. O ponto inicial diz respeito à minha qualificação de doutorado, numa lista anotada de possíveis membros de banca – difíceis escolhas. Percorro mais uma lauda e sou saudado por anotações garranchadas de serviços de consultoria que prestei. Depois são várias páginas dedicadas a resumos feitos ao estudo de exames de concursos públicos realizados, mas sem sucesso. A organização da tese de doutorado, que mudou diversas vezes, também aparece em algum momento e uma mensagem aleatória da namorada me desperta um sentimento de amor.

Por fim, quase lá pelas metades do caderno, encontro as páginas em branco que serão preenchidas a letras repletas de garrancho como eu fazia no início da minha carreira de cronista entusiasta. Na ausência do computador sou desafiado ao exercício de caligrafia e testado no meu português que anda pouco praticado, com alguns erros grosseiros. A escrita permanece a mesma a uma letra miúda até que de fácil compreensão. Como uma prova de avaliação, me sinto pressionado por fiscais que, na realidade, são objetos inanimados à minha volta, inclusive uma pequena estátua de Atena, fixa à cômoda, que será a juíza desse processo. Algumas vezes utilizo uma borracha encardida que já completou uns anos de vida. Porém, segue apagando com exatidão, em um único movimento, o verbete inadequado no texto.

Entre quatro paredes no apartamento, vou me aventurando a cada linha das páginas em branco, relembrando os feitos prodigiosos de um pouco mais de dez anos atrás.

JOÃO PAULO FERNANDES ZORZANELLI