As boas drogas têm SAC

@lorydmacedo

Lamento muito não ser a autora de uma frase tão lúcida, irônica, angustiante e com gosto de derrota, (se frases tivessem gosto e derrota fosse palatável). Uma sarcástica afirmação que ajuda a compor um livro de autoficção escatológica hilário. Sinto inveja mesmo. Desejo egoísta de ter pensado nisso antes da Tati Bernardi, a legítima dona e proprietária da frase, e de tantas outras tiradas perigosamente inspiradoras.

As boas drogas têm registro na ANVISA (essa frase é minha). Boas drogas são o resultado de estudos clínicos que se arrastam por um longo e burocrático período de testes, protocolos científicos cuja complexidade começa na terminologia, cobaias humanas não identificadas, normas éticas devidamente respeitadas (em teoria), e as melhores dentre as boas, as drogas que realmente fazem vista no panteão dos deuses psicotrópicos, são as precedidas de um receituário controlado.

Alprazolam. Uma bolinha branca de 0, 5 mg. A opção genérica é bem baratinha e muito eficaz. Eu estava na faculdade quando visitei o paraíso pela primeira vez. Naquela época da vida, os sintomas da ansiedade já pesavam em meu braço esquerdo como se esse membro me faltasse, ou melhor, o braço pesava tanto, doía tanto, incomodava tanto e ao mesmo tempo servia para nada.

Sentir a dor que começa no ponto em que a coluna se encontra com a base do crânio e se irradia ao longo de todo o braço é um sintoma que me causa certo prazer, e isso não será fácil de explicar. Uma sensação de pertencimento ao mundo dos desajustados da cervical. Atualmente, convivo com sintomas mais desafiadores e refinados, mas quando tudo começou a dor no braço me fazia sentir diferente, bem mais velha do que minhas amigas e mais experiente nos dissabores da vida.

As pessoas me diziam: “você estuda demais”. “Isso é postura errada, porque está sempre encurvada sobre livros ou encolhida em frente ao computador”. “Isso é escoliose aguda”. “ É o peso dos seus seios que cresceram muito e em pouco tempo”. “Isso é falta de musculação”. “É colchão ruim”.

O que não faltava era opinião alheia e diagnóstico de gente leiga, coisa que já existia mesmo antes do Google diplomar médicos. Não nego que havia um pouco de sentido em cada uma dessas afirmações, mas nenhuma delas era ousada o bastante. Nenhuma delas transpôs a fronteira do materialismo e insinuou, ainda que de forma canhestra, que minha quase insuportável dor no braço poderia ser a somatização de um profundo desconforto psíquico.

Comecei com 0,5 mg, por sugestão da minha mãe. O relaxante muscular mais poderoso a que eu tinha acesso não estava fazendo efeito e meu sono já não era mais o mesmo. No início eu não sabia dar nome ao problema e nem queria chamar de monstro ou coisa do tipo, mas aquilo acabou se tornando uma entidade com vida própria, e quando me dei conta, já falava da Ansiedade para as pessoas como algo tangível e externo a mim. E havia certo orgulho em falar com propriedade a respeito de um mal sentido por muitos (só vim a saber disso muito tempo depois), e externalizado por poucos (hoje em dia ter um ataque de ansiedade é tão comum que as pessoas poderiam registrar no currículo, como prova de vivência). Fulano de tal, 30 anos, 14 ataques de ansiedade confirmados, 53 ameaças de crise histérica com escurecimento passageiro da visão e incontáveis arritmias cardíacas.

Novamente uma sensação de pertencimento. Se você nunca sentiu necessidade de delegar o controle do seu sistema nervoso central a uma combinação sintética de químicos altamente viciantes, você ainda não entendeu a vida adulta.

Percebam como as coisas podem chegar até você por fontes extremamente confiáveis, mas nem por isso menos equivocadas, mas nem por isso mal-intencionadas, mas nem por isso qualificadas para te receitar um remédio tarja preta que pode te incapacitar por horas de sono sem sonhos. Mães são comumente responsabilizadas por tudo, ou quase tudo, que dá errado na vida da gente (de acordo com a terapia sistêmica e/ou constelação familiar), mas não quando se trata de ministrar remédios. Não mesmo! Mães são médicas intuitivas e sempre, sempre sabem o que é bom. E se um mísero comprimido, tão pequeno e discreto, é capaz de te transformar em um ser humano funcional, isso só pode ser bom, certo?

Só eu sei o quanto me custa parecer normal, e passar 12 horas fora de casa às custas de um sublingual (ou dois) combinado a um copinho de café (ou vários) e algumas idas demoradas ao banheiro para poder hiperventilar em paz. Eu só quero hiperventilar sem que ninguém se sinta na obrigação de me acalmar com palavras bonitinhas e gestos de desespero disfarçados de acolhimento. Só me deixa existir com a minha dor. Pega na minha bolsa a cartela de remédios e me dá um tempo que daqui a pouco eu volto a ser aquela que você conhece. Detesto dar trabalho. Ou será que é você quem não aprendeu ainda que existir é sofrer também. É trazer o sofrimento para bem junto de si na tentativa de auto compreensão. É descascar a cebola e revelar as camadas mais protegidas. Escancarar machucados antigos que não cicatrizam porque a gente não quer se responsabilizar pela cura. Quem tem cicatriz tá bem na vida. Acredite!

Raramente leio bulas de remédio. Não sou hipocondríaca. Não me pergunto se estou realizando acidentalmente uma interação medicamentosa de alto risco toda vez que tomo alguma coisa para viabilizar minha existência “normal”. Alguns diriam que isso é brincar com a sorte, testar meu anjo da guarda, falta de responsabilidade para comigo mesma, juízo de um vira-lata quando atravessa uma rua movimentada. Eu digo que isso é uma mistura de desespero e dor no peito como se um soco me fosse desferido de dentro pra fora e toda pressão da pancada se acumulasse entre os seios triturando o osso externo e acelerando o coração enquanto minha respiração começa a falhar e o ar vai faltando no universo inteiro e eu já não sei se posso me levantar mas não quero demonstrar que estou prestes a sair correndo ou me desmanchar e escorrer por todo o chão como sorvete derretido.

Tenho boas e saudosas lembranças da época em que eu era capaz de normalizar o ritmo da minha respiração sem precisar me esconder em algum canto solitário e silencioso para esperar a chegada de um conforto sintético. Um estado de ser produzido a partir de uma certeza concreta de que aquele comprimido, que hoje já é de 1 mg, vai fazer efeito.

Este texto é autoficção, sem qualquer compromisso com a realidade, e não faz apologia ao uso de remédio de qualquer tipo. Procure seu médico para melhores orientações.