Culpados e Inocentes
Doze anos, pernas finas e compridas sambando num short de malha, Talita estava desde às oito da manhã naquela calçada, em frente à loja dos Biscoitos. Junto dela estava o irmão de nove anos, o João.
– “Moça…”, “senhora…”, “… moço, compra uma caixa de bala? ” “Pode comprar uma…? ” – E passavam, desviavam, a maioria não olhava, nenhuma resposta, poucos gesticulavam e ninguém comprava. O sol já estava à pino e nem era meio-dia.
Mais adiante, estava a mãe, Aline, do outro lado da rua, sentada sobre um pano. Segurava, com a destreza de uma artista circense, um bebê de colo pela esquerda, agarrava a camiseta de um fujão de dois que ia escapando pela direita e com os dois olhos mantinha Talita e João na mira.
O local que Aline escolhera era estratégico: debaixo da marquise de um supermercado de esquina que por isso tinha só uma entrada. Assim ia abordando todos os clientes com voz suplicante e impressionantemente calma.
-“Senhora, compra um biscoito, um leite, um pão pr’as crianças por favor…”
Uma senhorinha idosa já conhecia de vista a família e tira da sacola um pacote de biscoito de maisena assim que sai do mercado. Aline agradece e começa logo a dividir o pacote entre os filhos. Não desmerecendo o pequenino de colo, põe em sua mãozinha o biscoito que ele, espertamente, começa a lamber. O fujão desvia o foco e se aproxima para pegar sua parte. Aline segue a lista e chama os mais velhos: ” – Talita! João!!”
Talita atravessa João para ir ter com a mãe que lhe entrega logo três biscoitos que são devorados freneticamente “– Mãe, to com sede! ” é que a maisena desceu seco.
Aline se preocupa, vê que o problema é mais grave: sede.
– “Senhora… moça…pode comprar uma água, um leite pr’ as crianças? ”.
Um senhor passa nessa hora e estende uma nota de dois reais. Aline entrega à João.
-“Vai lá, compra a água”.
Assim que João entra no mercado o segurança vai atrás:
– “Não pode pedir dinheiro aqui dentro não, garoto “.
– “Vim comprar água! “ – E mostra a nota de dois reais.
– “ Vai lá, pega e sai! ”
João não dá importância, vai ao freezer e pega a água gelada. Já na fila para pagar, a cliente da frente, assustada, se afasta abruptamente.
– “Ô menino! Olha o distanciamento” – e se vira para a moça da caixa – “Como é que vocês deixam entrar sem máscara? Onde está o gerente? ” – A caixa não responde. Talvez por entender que o distanciamento entre o menino e a cliente era maior do que essa supunha – “Menina, quer chamar o gerente?!”
E nada do gerente. A água na garrafa foi ficando quente e João, sem pensar, sai pela porta afora para se sentar ao lado da mãe na calçada. Abre a garrafa e toma os 250ml de um gole só. Por fim, chega o gerente, acompanhado do segurança.
– “Você roubou essa água foi? ”.
-“Não senhor, ele foi comprar… João você deu o dinheiro? ” – A mãe ficou confusa.
-“Comprei mãe, juro! ” – João tinha mais medo da mãe do que do gerente.
E aqui cabe lembrar do trecho da célebre frase da Fernanda Young: “não há nada mais elegante que um pobre honesto”. No caso de Aline, a elegância chegava a ser quase um defeito, pois se havia algo que ela não admitia era que os filhos um dia ‘dessem’ para roubar.
Uma pequena confusão se formou ali, entre passantes, curiosos, o gerente, o segurança, Aline, a cliente nervosa, João e o bebê de colo que nessa altura já se pôs a chorar.
Talita, do outro lado, viu tudo aquilo e, assustada, atravessa a rua desembestada sem olhar para o carro que vinha com velocidade e que, por sorte, não a atropelou. O mesmo não se pôde dizer quanto ao motorista, pois, um outro carro que vinha atrás pegou a traseira do seu em cheio.
E a confusão aumentou…
Entre choros, ameaças e xingamentos, a confusão só chegou ao fim quando veio a polícia que não sabia bem o que fazer para encontrar os inocentes e os culpados. Há um pouco de um e de outro misturado. Assim como há um pouco de nem um, nem outro.
Mas por trás de tudo, no fundo da cena, há um culpado.
Difícil de pegar, porque não vai à supermercados.
Kawer