A SÍNDICA, A PSICÓLOGA E OS TROMBADINHAS
 
 
Há coisas que acontecem na vida da gente que parecem surreais. Quando a gente lembra alguns meses ou anos mais tarde, parece que foi imaginação ou piada. Como eu posso acreditar que eu, uma pessoa tão calma e centrada, possa ter me descontrolado daquela maneira? Vou lhes contar o ocorrido, pois agora estou numa fase que, ao me lembrar da história, tudo que faço é rir...de mim mesma, é claro.

Há alguns anos atrás, fui morar num apartamento térreo no bairro de Humaitá que fica entre os bairros de Botafogo e Lagoa. A história já começou errada quando o corretor de imóveis me jurou “de pés juntos” que aquele lindo apartamento térreo “tipo casa” era um “achado” na zona sul do Rio de Janeiro.
_Veja a senhora! Prédio de três andares, estilo “art-decor”, bucólico, com duas simpáticas vizinhas nos andares de cima que, por sinal, são irmãs “unidíssimas”. O apartamento de baixo, o térreo, pertenceu ao velho pai delas e é o melhor de todos. Tem até um “jardinzinho” lá atrás. Foi feito pra gente sensível e de bom gosto, assim como a senhora!
 
Confesso que me deixei levar pelas palavras sedutoras do simpático corretor e, embora meu sexto sentido tivesse me avisado pra desconfiar da “esmola grande” e da fama de apartamento térreo, resolvi encarar e aluguei o imóvel.
 
Amigos, a despeito dos primeiros dias de perfeita lua-de-mel com o dito imóvel ‘tipo casa’, e chamando os amigos pra curtirem lá comigo, começou o inferno. Fui descobrindo, aos poucos, que as duas irmãs “unidíssimas” se odiavam e que disputavam a herança do apartamento “tipo casa” que eu estava morando. Brigavam entre si, e tentavam, cada vez que o apartamento era alugado pela mãe - que, espertamente, morava em Ipanema -, tornar a vida do locatário um inferno a ponto dele querer pagar para sair do local. Era apartamento do tipo “pague para entrar e reze para sair”, fazendo uma comparação àquele filme de terror.
 
Uma das coisas que elas faziam para me irritar era jogar lixo em meu “jardinzinho”, principalmente depois que o mesmo era varrido e as plantas regadas. Não adiantavam os pedidos , as cartas à síndica (que era uma delas) e outras coisas civilizadas para resolver o problema. Elas simplesmente me ignoravam e o “jardinzinho” virou uma verdadeira lixeira aberta. Uma delas também tinha uma péssima mania de bater o tapete, na hora de minhas refeições com minha família. A poeira entrava pela janela e nos sufocava destruindo o apetite e a s refeições. Também, começaram atacar meu carro. Todas as manhãs ele estava ou com pneus arriados, ou riscado, ou com lixo em cima e nos para-brisas. Isso tudo, entre outras coisas mais, foram me tirando a esportiva e, aos poucos  fui ficando muito irritada com toda a situação
 
Até que um dia, mexeram com minhas filhas e o meu copo transbordou. Quem é mãe, sabe que nessas horas, o instinto fala mais alto e a gente vira leoa protetora das crias. Tenho duas filhas que na época eram duas meninotas, uma de dez e outra de oito.
 
Bem, nesta época também, atendia num consultório de psicologia em Ipanema e, sabem como é o trabalho psi: tem que ter a cabeça sempre arejada, muito bem centrada, usar e estimular o pensamento seu e de seus clientes. Agir por impulso? Nem pensar! Tem que dar bom exemplo. Sempre dizia aos meus clientes: conte até dez, se precisar, até cem, mil, antes de agir impulsivamente.
 
Neste fatídico dia eu tinha terminado de atender um cliente e pedi cinco minutos ao próximo que já me aguardava na sala de espera, pra tomar aquele cafezinho e me concentrar para a próxima sessão. Neste exato momento o telefone tocou e, ao atender, minha filha mais velha gritou: “Socorro mãe! A megera de cima, ta aqui ameaçando a gente” . Engasgada com o café, balbuciei palavras  à esmo tais como: “Como assim? Ela está armada? Sua irmã está viva?”, e outras desconexões como estas. Ao que ela respondeu: “Não, mãe, ela disse que é pra gente baixar o som, senão ela vai botar os cachorros dela em cima da gente!”. Só consegui balbuciar: “Fechem as portas e as janelas que eu já tou chegando!”, e pra não perder o costume, “Não façam bobagens, USEM O PENSAMENTO!”
 
Chamei o próximo cliente e disse-lhe que precisava cancelar a sessão, pois tinha um assunto urgente a tratar, o qual me disse, ”Tá bom, mas essa sessão eu não vou pagar e nem vou querer repor!”. Tentei argumentar, mas naquele instante eu era mais leoa do que psicóloga e apenas repliquei “faça o que você quiser, mas agora tenho que sair daqui”, o qual percebendo meu nervosismo retrucou:”Calma doutora, não faça nenhuma bobagem. Use o pensamento!”. Engoli seco e desci para pegar meu carro estacionado na rua e seguir para minha casa em Humaitá. Caminho muito próximo, quando não tem engarrafamentos.
 
Vocês conhecem a Lei de Murphy? Pois é, naquele dia parece que tudo dava errado. Eu havia esquecido a lanterna acesa e meu carro ficou sem bateria. Minha vontade foi de chorar e de gritar, mas ao invés disso, saí do carro e passei a chutá-lo como se ele fosse o culpado por tudo aquilo. Chorava e chutava. Não percebi que estava no meio da rua e atrapalhando o trânsito. Só me apercebi disso quando escutei a voz do guarda atrás de mim, querendo me tirar do meio da rua.  Como respondi que ele cuidasse de sua vida e que se quisesse ajudar que empurrasse o carro, quis me multar por desacato.
 
Foi quando contei até dez, respirei fundo, usei o pensamento, e disse-lhe “calmamente” :
_E  eu vou lhe denunciar por não estar ajudando uma pobre e indefesa mulher em apuros!. 
O guarda ironizou dizendo “indefesa?”, e neste instante fui salva pelo meu cliente que por ali passava e tinha visto toda a cena (vexame!). Falou pro guarda:
_ É isso mesmo! E eu sou testemunha desta pobre mulher!. 
Agradeci a ele e a Deus e, claro, tive que tratar aquele “trauma” que ele passou em várias sessões, subseqüentes. Com o guarda e o cliente empurrando meu carro, ele finalmente pegou e pude seguir meu destino.
 
Porém, novo estresse me esperava pela frente: engarrafamento – em Ipanema, na Lagoa, e Humaitá. Tentava me controlar, respirar fundo e usar o pensamento: “Ora, é claro que elas estão vivas!”, “Cachorro não gosta de gente, mas de osso!”, “É claro que elas estão escondidas em cima do armário!”, e outros pensamentos “positivos” desta ordem.
 
Depois de quase uma hora consegui chegar em Humaitá, mas ainda tinha que me desvencilhar de algumas retenções até chegar a minha rua. Abri a janela do carro pra respirar e escutei: 
_Aí, ô tia! Nós temo um caco de vrido aqui e é mió que a tia vá passando a bolsa e o relógio!. 

 Eram dois meninos de rua “cheiradões de cola”, com olhares pretensiosos de serem bandidos de verdade. Vocês sabem que o ser humano diante da surpresa e do inusitado se espanta consigo mesmo, não é? Soube, naquele instante, que toda minha meditação para relaxamento, não tinha adiantado de nada. Saí do carro e ‘resolvi” dar umas palmadas naquelas crianças. O meu impulso foi tão brusco e tão repentino que os dois se assustaram e gritavam:

_Calmaí, tia. A gente é dimenor! Num bate na gente não, tia!.
Pegando os dois pelos braços gritei:
_ Seus pestes! Vocês não sabem que tenho que chegar em casa rápido?? Que é questão de vida ou morte?? Tentem me impedir que eu mato vocês! 
O maiozinho então falou:
_Calmaí, tia. Alguém mexeu com tu?
Gritei:
_ Sim! o bandida da síndica!.Ela quer que os cachorros devorem minhas filhas!  
_ Tu vai dá porrada nela, tia? Leva a gente com tu, tia. Nóis ta armado com caco de vrido. Nós pode ir lá e pegar essa cínica!
 
Sabe, gente, a inocência daqueles dois garotinhos metidos a bandidos, fizeram-me voltar a razão e perceber o ridículo da situação. Imagine, eu chegar em casa, com meus dois bandidinhos armados com cacos de vidro prá pegar a síndica? Contei até dez e disse:
_Não obrigada! Podem deixar que eu me viro!
_Ta bom, tia, nóis vai facilitar o trânsito pra tu.
 
E os dois, como dois verdadeiros guardas de trânsito, fizeram gestos, gritaram e abriram caminho entre os motoristas pra que eu pudesse passar.
 Olhei pra trás pra agradecer e escutei-os dizendo:
_ Vai lá, tia, e dá porrada que tu é muito forte!
_ Xa comigo! Mas eu vou usar o pensamento e não a violência.
_Tia, se tu quiser, nós ainda tem cola aqui pra cheirar. É pra acalmar...
 
Senti vontade de voltar e cobrir os dois de beijos como uma mãe faz. Mas, infelizmente eu tinha que seguir meu caminho.
Cheguei em casa um tanto ainda estressada, mas já apta a usar o pensamento. Ao abrir a porta, encontrei minhas duas meninas calmas e desenhando. Aflita perguntei sobre a tal vizinha e síndica e elas me responderam.
 
_Ah mãe! Ta tudo resolvido. Nós dissemos a ela que íamos chamar a polícia e daí ela parou de mexer com a gente!
 
Pois é gente, nada como a lógica infantil. Resolveram muito bem o problema e eu aprendi uma lição! Não menospreze a capacidade das crianças pensarem e se defenderem. E nunca menospreze a sua própria capacidade de cometer loucuras de vez em quando. Mas, antes que isso aconteça, conte até dez, cem...mil, se precisar.
 
            Rio, 07/11/2007