Sovina

Sou feito de água.

As pedras que me atiram criam buracos na alma, mas logo são encoberto por uma nova camada de água, que faz parecer que aquele ataque jamais existiu.

O rio continua a correr para a morte, de modo que sei que não guardo rancores, assim como, sei também que não amo profundamente qualquer coisa que me seja comum.

Meu apego pelas coisas está justamente no fato de que sou preenchido pelos vazios daquilo que não sinto.

Assim, a partir do momento que tenho a sensação de ter algo, minha energia se desloca na tentativa de eternizar aquela presença.

Meu carro antigo.

Minha cadeira com estofado rasgado.

Aquele "eu te amo" que paralisa o tempo pouco antes da porta do elevador fechar.

Minha avareza é fruto do meu vazio interior. Afinal, só deseja manter tudo, aquele que não sabe o que é ter verdadeiramente nada...

E assim, a melancolia e o saudosismo vão moldando a realidade, talvez para me permitir sentir algo que corte a pele, que quebre os ossos, que me faça sentir o gosto do sangue na boca.

E se isso for só culpa, tudo bem.

Pelo menos, ela eu poderei chamar de minha.

Trebe de Maria
Enviado por Trebe de Maria em 20/06/2021
Reeditado em 21/06/2021
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