DUPLO SILÊNCIO

Fuçando gavetas sem quê nem pra quê, achei o que não buscava. Rabiscado num velho caderno, dos tempos do lápis, estava lá: duplo silêncio. Não lembrava desse título e nem se eu mesmo tivesse escrito algo tão estranho; afinal, como pode um silêncio ser duplo? O texto estendia-se por umas duas páginas e meia, já bem esmaecidas pelo tempo e pela fraqueza do grafite de um cinza claro. Assim que li a primeira linha, saltei para o passado, uns bons anos para trás, e lembrei-me do que se tratava. É no silêncio duplo que se pode ouvir alto e claro. Era uma antiga lenda judaica que eu havia copiado de algum livro por um certo motivo que talvez tivesse sido importante. Reli o texto: dois amigos agricultores de um kibutz no meio do deserto do Negev trabalhavam arduamente todos os dias numa plantação. Ano após ano a colheita do que plantavam mal dava para sustentá-los. Num certo ano, porém, a colheita foi abundante. Havia comida para todos e com sobra para guardar caso o próximo ano não fosse tão bom assim como esse. Depois da farta colheita e de terem repartido tudo em partes iguais, cada um seguiu para casa com as carroças carregadas dos frutos da terra. À noite, excitados pelo cansaço e pela alegria, nenhum dos dois conseguia dormir. Um deles pensou: minha colheita e tão abundante que posso até reparti-la com meu amigo. Afinal ele tem sua mulher seus três filhos, seus pais; tanta gente para alimentar. Precisa mais do que eu que sou só. Para mim, a metade do que colhi me basta.

Nesse mesmo instante o outro amigo pensava: minha parte da colheita é suficiente pra toda a minha família e ainda sobra uma boa parte se eu repartir com meu amigo. Afinal ele é tão só; não tem sua mulher nem seus filhos nem seus pais para ampará-lo se precisar. Aquela noite foi longa para os dois. Mal-e-mal amanhecera e eles carregaram suas carroças com a metade do que tinham colhido e puseram-se a caminho, um para a casa do outro. Na estrada os dois amigos encontraram-se. Pararam suas carroças, olharam-se, porém não disseram nada. Não foi necessária nenhuma palavra para que entendessem a recíproca intenção. Eles sabiam que amigo é aquele que no seu silêncio escuta o outro.

Virei a página. Não havia mais nada escrito.

CESAR CABRAL
Enviado por CESAR CABRAL em 08/11/2007
Reeditado em 28/02/2008
Código do texto: T728569
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