SOBRE NÃO ESCREVER NADA

SOBRE NÃO ESCREVER NADA

Escrever qualquer coisa tem se tornado uma angústia quando penso na dor de parir um texto, embora seja prazeroso depois que é publicado, ainda sinto as entranhas mentais exaustas. Ando como o escultor que, não tendo o que esculpir, virou uma estátua.

O trabalho de colocar ideias em algum lugar que possa ser lido (página na internet, rede social, bloco de notas, livro) não é nada fácil quando se leva a sério esta tarefa. Existem inúmeros desafios que, a semelhança de Hércules, o aspirante a autor precisa enfrentar para se tornar escritor de fato.

Sintaxe, regência verbal, semântica, ambiguidade, ortografia (maldito teclado de celular) e melhorias infinitas são alguns dos ovos que evito pisar quando estou escrevendo na esperança de que alguém leia. Se alguém ler, bem-aventurado aquele que leu. Valeu o esforço.

Contudo, se a gramática normativa fosse minha única vilã, estaria num barco a deriva diante de ventos fortes, mas com remos, um mapa e uma bússola. O algoz dos algozes sempre é: o assunto.

Escrever... sobre o quê? E aqui perco tudo.

Na preocupação de saber "como dizer?", desço os nove círculos do inferno de Dante (ou da gramática). Mas quando me pergunto sobre "o que dizer?" fico por lá sem um Virgílio para me tirar dali.

Platão, não me apoquente com seu mito da Caverna! Reconheço que pensar cansa e é, sim, preferível, ficar na preguiça das sombras.

Nos últimos meses meu cérebro tem se recusado a enviar sinais elétricos o suficiente para elaborar um texto. Prefiro demorar para esculpir algumas linhas, mas fazê-lo bem feito.

No entanto, no mínimo o que quero escrever fica na semelhança de um quebra-cabeça que veio pela metade na caixa ou igual um livro escrito por Nigel Tomm chamado THE BLAH STORY, onde os 23 volumes (eu disse 23 volumes!) a palavra BLAH preenche e entenebrece o conteúdo da história inteira.

Leia o trecho a seguir:

"Quando blah foi até blah, blah, que queria muito blah, sabia que blah estava blah, ainda que blah odiasse blah, entendia que blah cada vez mais blah. Blah blah como um blah."

Tão criativo quanto ridículo, não acha?

Ninguém sabe sobre o que o livro fala e toda a crítica concorda:

"É um blah blah blah sem nexo".

Minhas últimas composições, entretanto, parece que vem seguindo, sem que eu saiba, mote semelhante. Almejo publicar alguma coisa, mas deixo muito tempo o bolo por muito tempo no forno pensando demais no sabor. Se tiver sabor. E a ideia, assim como o bolo, ou é abortado ou sai queimado.

Houve um tempo em que minha produção literária era como uma multinacional. Funcionava de dia e noite. Não parava. Se a inspiração veio a mente, é porque implora para ser convertida em palavras e voe pelo mundo. "Time is text! Eu tenho a solução para todos os problemas da humanidade e se encontra em minha caneta!"

Sou aficcionado por contos, independente do gênero e do autor. Já até escrevi alguns, dos quais imaginava serem os best-sellers não encontrados pelas editoras e roteiristas de sucesso. Hoje dou graças a Deus que nenhuma sabe daqueles textos.

Quanto mais amadurecia e aprofundava minhas leituras, percebia que minha escrita era apenas efervescência momentânea de um adolescente que se sente um Shakespeare, mas escreve como um orangotango. Alguns elogios que eu recebia, (de gente bem intencionada, claro) não dizia tudo sobre o que precisava. Mais do que críticas. Era necessário crescer e me aprofundar sobre esta arte de escrever.

Seguro do meu objetivo, pesquisei, assisti vídeos, estudei o assunto. Lia outros gêneros. Com mais cuidado. Mais devagar. Com dois olhos e dois olhares: como leitor e como escritor. Atentava-me para cada palavra repetida ou posição da vírgula. Questões como "Por que esta frase mexeu comigo?" ou "Se no lugar disso fosse aquilo?" dominavam minha mente sempre que meus olhos corriam sobre um texto. Não deixava escapar nem placa de trânsito ou anúncio publicitário.

Pronto! Agora já sei do básico que preciso  sobre escrita!

Errado.

A expectativa era encarnar Monteiro Lobato ou Pe. Antônio Vieira. Mas minha realidade foi expressa nestas palavras que um entrevistado respondeu ao repórter:

"Mudava pra melhor. Com certeza. Que ele disse que ia mudar melhor... já tava bom. Disse que ia mudar pra melhor. Não tava muito bom. Tava meio ruim, também. Tava ruim. Agora parece que piorou."

Fiz mal em estudar o assunto? Jamais! Apenas esqueci do principal. Escrever.

De que vale um automóvel novinho com tecnologia de ponta se quando giro a chave a primeira coisa que penso é que vou bater ou acabo deixando o carro morrer antes mesmo de trocar de marcha (ou parágrafo) e iniciar o trajeto?

Quis correr a maratona tendo tênis novos e confortáveis, roupa adequada, bem hidratado, com suplementos literários de sobra, dieta balanceada, mas parei de exercitar as pernas. Não esqueci como se corre. O medo de não correr bem me fez desistir de tentar.

E por que esta sanha me devora? Por que esta angústia comprime meu peito? "Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te perturbas dentro de mim?" Disse o salmista no exílio e faço minhas tais palavras.

Porque não basta colocar as palavras no "papel" como se atira uma flecha sem direção esperando acertar Acabe, ou num passe de mágica todos entendessem tudo o que está escrito. Um bom texto (PARA MIM, que fique claro) é aquele que nos permite passear pelas avenidas muito bem pavimentadas pelas palavras do autor sem precisar pedir informação sobre em que rua chegar ou, ainda que não saiba onde, almejar por alcançar o fim, deliciando-se com o percurso, admirando cada paisagem para que, no ponto final da última frase, suspiremos aliviados e soltemos uma interjeição de satisfação:

"Nossa!"

"Poxa!"

"Caramba! Que texto bacana!"

Esta emoção fica exposta no rosto, percebida no tom de voz ou até guardada na mente do leitor, que agradece intimamente o seu trabalho.

Por este motivo não digo que estava sem vontade de postar ou (como já estive) com bloqueio criativo. Estava sem assunto mesmo.

Conto? Poesia? Humor? Mensagem evangélica? Artigo?

Nada.

Até que me veio uma solução.

Recentemente comecei a ler uma antologia de crônicas de autores brasileiros. De Machado de Assis à Lourenço Diaféria. E que experiência maravilhosa tem sido! Já havia visitado Rubem Braga e Luís Fernando Veríssimo noutros carnavais, o que me fez procurar mais sobre este gênero.

No livro em questão, Machado de Assis me fez rir horrores; Lima Barreto foi fenomenal em suas ironias ácidas; Olavo Bilac critica o mundo à sua volta com a precisão de um cirurgião. Entre outros. Cada um com seu estilo.

O que me chamou atenção, no entanto, não foi apenas a escrita. Mas o tema: o cotidiano.

Dicas de como as pessoas deveriam se portar num ônibus, candidaturas políticas, obituários de jornal, frases que irritam, problemas não resolvidos pela prefeitura, o cinema e os vadios da época, até sobre uma conversa com um homem estudado que falava tão mal que nem parecia ser da cidade encantaram esse que vos fala.

Coisas simples ditas de forma simples com a técnica de artífices das palavras que tanto eram. O ordinário dito de modo extraordinário.

Isto me fez ver o quanto a vida está passando diante dos meus olhos e não estou vendo a oportunidade de agarrar esse anjo no meu vau de Jaboque e lutar com ele até um texto emergir do óbvio que me visita todo dia.

Assim sendo, resolvi encarar esse moinho de vento com a louca valentia de um Dom Quixote e ir para cima sem medo de morrer ou bater com a cara na parede, montado, como diria Ariano Suassuna, no "riso a cavalo e no galope do sonho."

Resultado: nasceu este texto. Uma crônica sobre não ter assunto nenhum.

Claro que importante não é só o que se diz, mas como se diz. Porém, é necessário dizer algo. E eu tenho muito a dizer, ainda que agora não seja muita coisa, a criatividade é uma fagulha implantada em todos nós, por aquEle que, do Ex-Nihilo (do nada), fez todas as coisas. Contudo, nos deixou o segredo para que a luz apareça:

"E disse Deus..."

Palavra nenhuma alcança voo quando a boca é gaiola fechada. E a palavra do escritor só é luz quando vem à luz. Tire esta lâmpada de debaixo da cama!

Portanto, o melhor jeito de começar a criar um texto é escrevendo. O melhor modo de se dizer algo que se quer, é falando. Quer ser notado pelo que tem a dizer? DIGA!

Não devemos manter nossas palavras para sempre nas trevas da nossa mente. Mesmo que agora nada pareça, será este pontapé inicial que atingirá em cheio os leitores que mais precisam daquele chute no ar para desatrofiar os músculos das pernas da criação literária: nós mesmos.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 09/07/2021
Reeditado em 09/07/2021
Código do texto: T7296023
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