Invasão de criação

Conta (contava) minha mãe que certa vez uma amiga sua estilista foi contratada por um clube a confeccionar uma fantasia para concorrer a um concurso momesco. A fantasia foi denominada “Esplendor de Cleópatra” e se constituía de um vestido todo bordado com pérolas sintéticas, tendo ficado lindo, exuberante, e como a jovem que iria usá-lo já teria provado, a arte final só iria decorar seu corpo momentos antes do desfile.

Horas antes do desfile a estilista resolveu apresentar sua obra ao presidente do clube, em espécie de respeito e prestígio, dando a este a primazia de vê-la antes de ser apresentada ao grande público, concorrendo em nome de sua agremiação.

Ocorreu que a mulher desse presidente o acompanhava na ocasião da avant-première tendo visto a fantasia achou de dar seu pitaco. Faltava alguma coisa que sua sugestão disse o que era, que fossem colocadas umas safiras em alguns pontos do vestido, a realçar de certa forma as cores do clube.

A estilista mesmo a contragosto para não desagradar o presidente deixou que sua criação fosse invadida e adulterada. E se perguntou como é que alguém, saindo sabe lá de onde, tivesse a petulância de se enxerir em sua arte? Mas, pagou para ver em que ia dar aquela intromissão inoportuna.

Horas depois começou o desfile.

A primeira-dama intrometida se posicionara em umas mesas reservadas em local privilegiado próximo a passarela e já segredara às amigas que a fantasia da candidata a rainha pelo clube presidido por seu marido tivera uns detalhes incluídos em última hora, fruto de suas ideias e estava confiante no efeito que haveria de ser as safiras incluídas naquele mar de pérolas, dizendo que seriam como se fossem oásis no deserto. E ao entrar sua candidata se alvoroçou toda, passando a fazer comentários sobre sua providencial interferência naquela fantasia.

Chamadas, desfiles, gritos, assovios, palmas, discussões, escorregões de candidatas, vaias, desmaios, e a candidata com o “Esplendor de Cleópatra” fez sua parte, num desfile irrepreensível!

Mais tarde veio o resultado começando pelo quinto lugar. As quatro primeiras foram aclamadas princesas. E a “rainha do Egito” nada. Com certeza seria o primeiro lugar, com o título de rainha daquele Carnaval.

Os jurados eram todos turistas estrangeiros de passagem pela capital paraense, escolhidos horas antes pela comissão de desfile, sondados e convidados nos hotéis onde se hospedavam. A intenção evidente era de não serem contagiados pela parcialidade que poderia haver num filho ou morador da cidade ou do Estado, votando não na melhor fantasia, mas no clube de sua predileção.

Mas, o júri soberano não escolheu a “rainha do Egito”.

A mulher do presidente atribuiu o fiasco a estilista que tinha apresentado uma criação muito simplória, saindo dali amuada e decepcionada.

Mesmo tendo perdido, a estilista de certo ponto até torcera contra a sua fantasia adulterada, pois se ganhasse não teria quase ou nenhum mérito que seria todo canalizado para as alterações da mulher do presidente do clube representado, tendo ao final consolando a candidata, sorrindo intimamente.

Um ano se passou e novamente o carnaval chegou. E naquele ano a mulher do presidente, que cumpria o último ano de seu biênio, resolveu chamar para si aquela responsabilidade, escolhendo outra estilista, acompanhando pari passu a montagem da fantasia, tirando, acrescentando, mudando. E no final a fantasia ficou mais parecendo uma árvore de Natal, com um pomposo título qualquer.

E finalmente chegou o grande dia que naquele ano apresentava um maior número da candidatas.

Havia um clube debutante no concurso que resolveu contratar a estilista que fizera o “Esplendor de Cleópatra” no ano anterior e esta exigiu carta branca para apresentar a fantasia que quisesse sem intromissão de quem quer que fosse.

Novamente formou-se um júri de estrangeiros de passagem pela cidade e novamente foram escolhidas inicialmente as quatro princesas. A candidata da intrometida a estilista nem foi classificada.

No dia seguinte, depois de receber um carão do marido, ofensas de associados, repúdio da diretoria, a intrometida passara noite chorando e de manhã, visitada por amigas e irmãs, passou a criticar as decisões do júri. Como é que uma russa ex-bailarina do Bolshoi ia entender de fantasia? E um pintor de arte impressionista? Uma pesquisadora alemã de animais silvestres? E os demais? Até um cineasta francês se deixara engambelar. Era demais. Estava embuchada. A estilista que no ano anterior fizera o “Esplendor de Cleópatra” conseguira ganhar. E sabe como? Com a mesma fantasia do ano anterior. Só retirara as safiras, as mesmas que a intrometida colocara “para dar mais brilho”, e renomeara a fantasia com o nome de “Resplendor de Cleópatra” e conseguira aplausos do júri e contagiado o público. Parecia coisa de bruxaria, conspiração. O pior não foi a esculhambação do marido, a hostilidade dos membros da diretoria e outras situações desagradáveis. O pior mesmo foi o riso de mofa da estilista.

16/08/2003