Apesar de Tudo

Eu podia ver faíscas saltando de seus olhos, enquanto Ellen me encarava calada. Mas foi como se um oceano de ressaca fluísse para cima de mim, quando ela quebrou o silêncio.

- Você pode voltar pra aquela puta quantas vezes quiser. Já passei do ponto de ligar.

- Não tenho nenhuma puta pra voltar.

- Tanto faz, ok? Eu não me importo.

- Você não se importa com o que?

- Com o que você faz quando não está comigo.

- Não parece.

- E o que parece?

- Parece que você está prestes a explodir.

Ela saltou da cama, foi até o banheiro e bateu a porta.

Voltou segundos depois e gritou.

- Você é um idiota! Um filho da puta e um idiota.

- Obrigado. – Respondi cinicamente.

- É isso... É isso... – Ela falou, e retornou para o banheiro.

Comecei a juntar as minhas coisas, já prevendo o pior. Ouvi o barulho do chuveiro ligando e o que pareciam ser socos ou chutes na parede. Peguei minhas camisas no armário e alguns livros na mesa de cabeceira e joguei tudo dentro de uma mochila. Depois me sentei na cama e acendi um cigarro.

Ellen saiu do banheiro enrolada numa toalha e começou a agir como se eu não estivesse no quarto.

Pegou um cigarro e procurou por um isqueiro para acender. Mas não encontrou nenhum. O único que tínhamos estava no meu bolso. Saboreei a raiva dela por alguns segundos e pensei em sair sem dizer nada. Inquieta, ela parou de procurar e correu com passos duros para a cozinha. Fui atrás pra saber o que ela pretendia e dei de cara com ela tentando acender o cigarro na boca do fogão.

Ellen deu um grito e se afastou, quando uma mecha de seu cabelo pegou fogo. Aparentemente ela também tinha perdido parte de uma sobrancelha... Mesmo assim, não tinha conseguido acender o cigarro.

Ela se encostou na parede e soluçou como se estivesse à ponto de chorar.

Fui até ela e entreguei o meu cigarro aceso. Fiquei mais aliviado quando percebi que ela não tinha nenhuma queimadura séria. Apesar disso, o cheiro de cabelo queimado tomou a cozinha completamente.

Ellen deu um trago e esticou a mão pra me devolver o cigarro. Balancei a cabeça negativamente e ela seguiu fumando.

Me aproximei e lhe abracei com toda a ternura que ainda restava dentro de mim,

e que eu achei que havia se perdido depois das tantas batalhas sem qualquer objetivo que disputamos.

Ela recostou a cabeça no meu peito e desatou a chorar. Depois de alguns minutos ela se acalmou e tudo ficou em silêncio.

- Não existe nenhuma outra puta em minha vida. A única que eu tenho é você. Mas o meu maior medo é que você encontre outro idiota pra me substituir. – Falei.

Ela se afastou um pouco e me olhou, como se procurasse as palavras exatas pra me responder, mas não pudesse encontrar nenhuma.

- Mesmo que houvesse, eu não me importaria.

- Tem certeza?

- Não tenho certeza de nada. Nem quero.

- Eu me importaria se aparecesse outro em sua vida.

- Eu não tenho paciência pra outras pessoas. Você é um dos poucos que eu ainda tolero.

- Que honra a minha então.

- Ou azar... – ela falou com um sorriso amarelo.

Voltamos para o quarto e Ellen foi ao banheiro para ver o estrago que tinha sido feito em seu cabelo.

Fiquei encarando as toalhas dobradas sobre a cama, que Ellen havia roubado provavelmente de motéis. Percebi que ela tinha essa mania, pelos vários itens semelhantes espalhados pela casa dela. Mas ela nunca falava sobre isso.

Era engraçado estar na cama de uma ladra compulsiva. Mesmo que ela nunca roubasse nada de valor. E nunca de quem não podia se dar o luxo de ser roubado, pelo que eu pude perceber.

Quer dizer... nesse ponto talvez eu estivesse errado.

Ela tinha tomado pra si, muitas coisas que eu não poderia me dar o luxo de perder.

Talvez meu coração devesse estar disposto, junto com as toalhas, ou com as outras coisas que ela havia roubado. E talvez fosse esse o motivo que me fazia ainda estar com ela...

Mesmo com as explosões e as brigas idiotas. Mesmo com os incêndios e as ressacas.

Deixei esse pensamento de lado e desfiz a mochila que tinha acabado de arrumar.

Ellen voltou do banheiro e parou bem na minha frente.

- Eu te amo, apesar de tudo – Ela disse solenemente...

E eu me espantei, porque era a primeira vez que ela falava aquilo.

- Eu também te amo. Apesar de tudo... – Respondi.

Ellen sorriu e deixou a toalha que tinha ao redor do corpo cair no chão.

Então se esticou e apagou a luz.

Estava tudo bem...

Apesar de tudo.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 09/07/2021
Código do texto: T7296220
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