Não Eu

Preciso me encontrar.

Já dizia Cartola, né?

A voz de quem segurou a dureza da vida na garganta. De quem carregou o peso de suas próprias escolhas nas próprias costas.

Eu adoraria dizer que sinto saudades, mas melhor não. Vai que resolvem acreditar, embora eu nunca tenha mentido antes. Alguns detalhes já tinham passado despercebidos enquanto o restante encontrava-se esquecido dentro do meu peito.

Eu jamais deveria ter ido procurar o sentido.

Ir embora.

Ir embora do trabalho que te atormenta. Ir embora daquela relação que não soma e que você sabe que não vai dar certo. Ir embora da casa dos pais, da casa da esposa. Da sala. Do quarto. Do beco. Da esquina. Da quina. Da trilha. Da mesa.

Ir embora.

Por minutos, dias, anos ou então pra sempre. Pra se encontrar consigo mesmo.

O dia que voltar - e se voltar - as coisas serão vistas com olhos de uma mesma outra pessoa, sob outra perspectiva.

Aos vinte e cinco anos de idade, eu ainda não consegui entender muita coisa, nem o motivo de estarmos aqui. Procuro. Resisto, insisto e reexisto. Até tarde da noite.

No final das contas, acho que os meus escritos são aquilo que mais se aproxima de uma máquina do tempo.

Vivemos e sobrevivemos sob um céu com estrelas e noites claras, mas também com céu sem estrelas e com noites escuras. Eu queria gritar, mas as estrelas, por sua vez, falam de mansinho.

Fico me perguntando sobre quais coisas eu não dou valor enquanto estou distraído pela vida. Na maioria das vezes são coisas que eventualmente não despertam amor a primeira vista.

E se for um passarinho no jardim? E se for um por do sol diferente, daqueles alaranjados ou daqueles rosados? E se for uma cerveja depois de um longo dia de trabalho? E se for... você?

Nada de especial, no caso. Procurar pelo mais simples.

A distração ainda vai salvar a minha vida, enquanto a nostalgia é o sofrimento mais prazeroso de todos.

De repente os lugares ficaram vazios ao meu lado. Dos cinemas, da escola e dos bares. A arte, independente de qual seja, importa. Eu me refiro aos quadros, escritos e também àquela música que dançaram juntos pela última vez. Eu me refiro à arte daquelas que a mãe não pode ver. Eu fiz muito. As duas. Eu não sei o que vai ser de tudo isso amanhã ou daqui uns cem anos - ou menos - quando eu não estiver mais aqui.

A arte é a prova de que estivemos por aqui. Seja uma pintura rústica na parede, um livro publicado, um quadro exposto num museu ou com alguma história pra alguém dar risada.

Talvez seja essa minha maior preocupação.

Eu já perdi o cabo com que toco a minha vida faz tempo e nessa altura perder o sono para encontrar já nem faz tanta diferença.

Não entendi, ainda, se o tempo que passa e a gente fica ou se a tempo que fica e a gente passa.

Aos poucos, vou desconstruindo essa busca incessante por aquilo que não sei, enquanto procuro aceitar que o tempo é uma criação cultural: No tempo não existe passado, presente e futuro. Existe o tempo. E nós existimos - com essa falsa sensação.

A arrogância significa a morte do homem. A ganância é o primeiro nó.

No entanto, no final das contas, sou um eterno descontente, como já dizia o poeta. Nunca está bom o bastante, embora esteja. A cada conquista, comemoro e logo vislumbro outra. “É só o começo” - eles dizem. Será?

É como cultivar flores mortas num lindo vaso. Venerar o poeta que eu nunca fui.

O aperto da saudade e o deleite da redescoberta.

Para que se perca o que jamais será perdido.

A pergunta é:

Será que eu serei saudade?

No último da minha vida eu provavelmente vá saber. Ninguém nunca voltou pra me contar, mas eu acho que sabemos e sentimos quando estamos partindo.

Depois que o filme da minha vida passar, com certeza me perguntarei:

Quem eu fui?

(E evidentemente o que eu serei)

Eu fui o tudo. Prazer.

Eu fui aquilo que eu fiz. Eu fui aquilo com que me importei. Eu fui aquelas que amei. Eu fui aqueles que amei. Eu fui a história. Eu fui estória. Eu fui sorriso. Eu fui lágrima. Eu fui a preguiça de domingo. Eu fui o sono da segunda feira. Eu fui a poesia que me emocionou. Eu fui as músicas que escutei. Eu fui o programa da televisão que assisti. Eu fui o jornal que li. Eu fui meu livro favorito. Eu fui dúvida. Eu fui resposta. Eu fui certeza. Eu fui o que aprendi. Eu fui o que ensinei.

Eu fui a minha comida favorita. Eu fui o que bebi. Eu fui o que exalei. Eu fui estresse. Eu fui raiva. Eu fui ódio. Eu fui rancor. Eu fui decepção. Eu fui hipocrisia. Eu fui felicidade. Eu fui amor. Eu fui paixão. Eu fui os brinquedos que um dia brinquei. Eu fui as gírias que usei. Eu fui os segredos que guardei. Eu fui os segredos que deixei escapar. Eu fui minha praia favorita. Eu fui o amor atordoado que vivi. Eu fui a conversa séria que tive com alguém. Eu fui piada que fez a mesa rir. Eu fui o abraço sincero. Eu fui o sorriso terno. Eu fui a infância que eu tive. Eu fui a dor de ter fracassado. Eu fui o extase de ter vencido. Eu fui o beijo roubado. Eu fui um conselho. Eu fui o orgasmo. Eu fui um desabafo. Eu fui uma nota errada. Eu fui o tempo perdido. Eu fui o tempo passado.

Eu fui - e vi - o tempo passando.

Eu fui.

Embora.

Eu serei...

Então, existe algo a ser dito, fale logo, afinal de contas, a vida nem é tão longa assim. Estaremos esperando.