Numa tarde fria, na pandemia, num café qualquer.

Tarde fria, na pandemia ... num café qualquer.

Era uma tarde fria, bem fria, abaixo da média, num recorde nacional. "Vai saber!" Ela diria, de ombros pro alto: "as contradições da vida, até no aquecimento global". 

Os pés e as mãos estão bem gelados, nesse canto do mundo não se é muito acostumado ter que se esquentar. As roupas não são tão próprias, passa-se frio mesmo.

O café estava vazio, ela gostou! Um lugar para tomar algo quente e não ter que se preocupar com o ar a ser compartilhado com mais ninguém.

Problemas de pandemia, ela diria, com os ombros para baixo. Preocupações com o ar a se compartilhar. Alguns diriam ser paranoia dela. E esses, que acham ser paranoia e conspiração, estão em todos os lugares, a gritar e espernear. Todavia, e de fato, é real. É bem real. Quem já observou microorganismos por uma lente de microscópio, sabe: é real, e pequeno, e circula com muita facilidade por aí, de boca em boca, se alastrando pelo ar. É o caso dela, já viu e sabe como funciona. E quem então, acabou de perder alguém, esses sim, sabem ser mais real ainda e que machuca e é sério.

O ar na cafeteria, pequena, aconchegante e bem quentinha, é um chamariz, esperava ver pessoas bem perto, uma certa aglomeração, acomodando-se para uma xícara de café, naquele intervalo de um dia frio, entre as horas do suposto trabalho. E, quem sabe, ela pensava esperançosa, sairia uma "boa tarde" e uma saudação entre os estranhos a se esbarrarem. Estava de máscara, uma hora ou outra, iria retirar, esperaria a xícara do café esquentar um pouco as mãos, e pronto, lá estariam o seu nariz e boca, totalmente expostas para cheirar o ar, quentinho e compartilhado da cafeteria, e degustar o café.

Ela pensou, cabisbaixa: - poxa, que bom, não há ninguém!

Não sabe se já pirou, mas na fuga da loucura de uma pandemia, um café quentinho fora de casa é um bom passo a conquistar. Mas só que, só se for assim mesmo: no vazio, sem ninguém. Que privilégio poder se arriscar assim, com requinte, aconchego, bem na hora de um suposto trabalho, que nem mais hora tem, e com uma bela margem de segurança: não há ninguém.

O pensamento, na verdade, não foi de privilégio ou de conquista de algum prazer que a algum tempo não se usufruía, mas sim de perturbação: não há ninguém.

Ela queria mesmo era se arriscar, sentar perto, falar, cheirar o ar, se encostar, sem medo e sem a preocupação de arriscar mais ninguém. Queria mesmo era abaixar a máscara, olhar para o lado, dar uma "boa tarde" e perguntar "que horas são?". Beber o café, esbarrando em desconhecidos, e reclamar do frio para alguém. Conversar com o caixa, e escolher o bolo, experimentando com as mãos mesmo, em pedacinhos. Conversar, pertinho, como se fala com o taxista: - E essa pandemia aí? Mas que coisa, né, será que chegará aqui?. E escutar: - Ah, aqui não vai chegar não, é coisa de estrangeiros, né, ficará por lá!

Pois bem, chegou num outono. E já se passaram inverno, primavera e verão, e ficou. A realidade: já mostrou como é. A preocupação de se passar três semanas com a doença e também saber de alguém que se foi, aumentando as estatísticas que aparecem noite e dia no jornal. Um reboliço. E com todo o cuidado do mundo, de máscara, proteção e isolamento, num novo inverno, só restou o vazio de uma cafeteria, do coração e um novo tema: "mas que frio é esse?!".