Alô comunidade

Correr a rua, pisar o chão molhado, sentir o cheiro da comunidade; poder sonhar os sonhos de cada pessoa que encontrei nas minhas andanças pelas favelas. Tudo faz sentido quando encontramos o outro no seu habitat natural. Na palafita que balança com o vento, como que acenando para a gente, num convite de poder entrar, encostar nas paredes de tábuas e olhar o outro no seu habitat. Ver o mangue através da janela, receber o vento soprando nos nossos rostos enquanto percebemos pelas fretas das tábuas o rio lá embaixo: vivo, intenso, convidador. Enquanto me apercebo das coisas que nos são contadas me lembro do filme da minha vida. Fabiana, encostada na entrada do quarto da filha mais velha conta o seu conto. Todos ali dentro ouviam e espiavam ao mesmo tempo. Era um universo novo, cheio de cores e dores. Revelado nas suas minúcias, esmiuçando-se. Vida brava, desafiadora, que Fabiana encarava com atitude – Professor, aqui a gente vive de doação! Fui bater no meu passado. Aproveitei para olhar para a garotada que estava comigo. Alguns ficaram sem chão. Dois saíram da casa de Fabiana e foram parar no meio da rua chorando. Confesso que chorei junto, miúdo, por dentro.

A comunidade é minha referência. Caminho com a ternura dos velhos moradores e suas falas, seus verbos, suas necessidades de serem ouvidos. O relato das violências sofridas está na fala do outro que somos nós, que cruzamos nossas referências com suas referências e lembramos das semelhanças de nossas vidas. Mas não só da violência vive o outro que habita nosso interior. Fala-se de amor. De um amor local que nunca tinha visto. Senti um orgulho tão grande desse amor – Professor, daqui só saio para o cemitério. A televisão fala que é violento, mas nunca entraram aqui para ver o que é verdade. Essa era a violência.

Eu vi os sonhos nas vidas daquelas pessoas. O orgulho da vó que tinha na sua netinha uma campeã. – Professor, ela chegou agora de madrugada de uma competição no Rio de Janeiro! Aprendeu judô nos projetos sociais que assistem a comunidade. Lembrei-me de uma moradora que nos levou para o terracinho da palafita e se dirigiu aos jovens que estavam comigo – Vocês, jovens, são o futuro do Brasil. Estudem. Eu fiz quatro cursos, sou pedagoga, meus filhos estudam no Instituto Federal. Amo minha comunidade e criei meus filhos aqui. Eu senti o orgulho dela em mim.

Eu só quero é ser feliz. Andar tranquilamente na favela onde eu nasci.