Mundo perdido

O barulhinho do chamado soou e eu, de prontidão, empurrei o dedo na tela do celular. Maria Oliveira, cinco quilômetros de distância, destino Ypês. Putz, na hora lembrei daquela música de Belchior. Como era mesmo a música? Era algo assim: vê-de o pé de Ypê, “apenasmente” flora, revolucionariamente apenso ao pé da serra. Não sei se essa palavra, apenasmente, realmente existe. Fica evidente, parece-me, invenção da mente do bigodudo. Não que isso seja relevante para o contexto, é possível entender mesmo sem entender.

Dei o primeiro giro na chave e as luzes do painel acenderam-se. Liguei. Engatei a primeira e pisei no acelerador. Seta para a esquerda, seta para a direita, pisca alerta: uma velha queria atravessar a faixa, não quis esperar o fluxo vagar – talvez tenha me atrasado um ou dois minutos, mas é isso, Maria, Maria que espere. Spotify, toca aí um Miltão. “Vai demorar? ”. “Não, estou a caminho. ”

Maria é bonita. Quase toda Maria é bonita. Se eu fosse pai, escolheria esse nome para o bebê. Esse ou Madalena. Mas aí se aparecesse um Paulo Honório no caminho? Não, melhor Maria mesmo. Olívia também é bonito: Olívia, nome de azeite. Gostei. Do Ypês para o Valentina, cara. “Moça, deu quanto para você? “. “Dezoito reais”. Bom, vou gastar uns dez golpes de gasolina, e ganho oito. Se eu pegar mais uma ou duas, fecho os cinquenta do dia. Olhei para o retrovisor, olhei para Maria, ela olhava-me de volta. Usava terno, ou smoking, sei lá, essas roupas de advogado e desceu no Palácio do poder, no Varadouro. Não parecia uma Maria que apenas aguenta a vida, parecia viver.

Barulhinho de novo, três quilômetros, agora vamos para Bayeux, na França. Cidade morta: tudo me parece sujo e feio por aqui. Feio não, cinza. Se bem que, ao meu ver, são sinônimos – quem, por Deus, pinta uma cidade de cinza? Cinza não é cor, é a ausência dela. Queria dizer isso ao Estives, meu novo companheiro de carona, cujo aspecto e fisionomia era tão isenta de cor quanto sua residência.

“Olha a gazela” – me disse o Estives, ao passarmos por um rapaz de feições jovens, devia ter no máximo uns quinze anos.

“Dessa idade, já é viadinho” – completou. “Queria ver isso em 1970, ali que era bom. Tinha-se respeito pela família, não se permitia essa porra nas ruas. Nada contra, motor, é só minha opinião.”

Como eu não respondesse, calou-se. Poucos minutos depois, enquanto passávamos pela Avenida Liberdade, em frente a um bar repleto de mulheres, tornou a falar:

“ Bichinha gostosa. Tem um rabão. Olha lá, peitinho duro. A bicha é aprumada. E quanto mais novinha melhor, né? “ – e sorriu.

Cinco minutos depois, parei o carro para que ele pudesse descer. Antes de sair, remexendo-se no carro feito lagartixa, forçoso a deslocar-se, disse-me: “Acabou-se o respeito, motor, acabou-se o respeito”.

“Sim, acabou” – respondi.

Estives desceu, e o mundo reconstruiu-se de novo.

Adeus, Estives sem metafísica