ECOS DE JORNAS


Nestes meus silêncios, nos longos passeios da lembrança, vou resgatando fragmentos daquilo que fui, daquilo que vivi.
Ainda que sejam coisas tão banais, sinto uma satisfação em partilhar com os amigos que me dão o prazer da leitura.

O pensamento me traz as "jornas", tão comuns em tempos idos.



Num instante, estou no paiol , na casa de tio Elias.
Chove !...
[ Sempre que chovia, ouvia-se a frase de efeito: "Tardes de chuva...Tardes de jornas" ]
Aí reunia-se a piazada da vizinhança e num esforço concentrado, muitas balaiadas de milho eram debulhadas para alimentar o artefato, pilotado pelos meninos mais velhos.
Tanto esforço era na certeza de que ao final da tarefa, um café encorpado com bolinhos de chuva nos seria servido e depois concedida a carta de alforria para espinotear campina a fora.
Tia Flora punha mão na massa e aquele cheiro de fritura vindo da cozinha nos estimulava.
Dentro do galpão, entre uma espiga e outra, rolava a guerrinha de sabugos, a caça às ratazanas e o remexer incansável nas quinquilharias de onde surgia sempre algo inusitado.
Diante da porta do paiol iam-se aglomerando: cavalos, vacas, bezerros e toda sorte de penosas cobrando suas quotas no produto triturado.
As cabras, sempre medrosas das chuvas, baliam ao longe protegidas sob o telhado do estábulo.

E aquele ruído choco trepidando sobre o assoalho de madeira era melodia de dias chuvosos, de lama e ventanias.
Quando a tarefa acabava, a mesa estava posta à nossa espera.Éramos servidos e titio espiava a agitação assobiando trechos de uma canção gaúcha chamada "Loira faceira", sua preferida.
Depois, a imensidão verde dos campos nos engolia e as frutas silvestres de cada temporada se nos ofereciam em abundância.
Mas as jornas provocavam também algumas divagações na gente adulta.
Do paiol de dona Julia,uma polonesa nossa vizinha, soava o eco de uma poderosa jorna.
Remetia ao som de trovoadas longínquas , daquelas que parecem vir dos sopés das montanhas.
Lembro minha avó paterna, de cuia na mão, espiando as plantas molhadas no quintal.
A cozinha era escura e a janela trazia o vigoroso do verde espalhado pelos canteiros.
Na soleira da janela ela sorvia o seu chimarrão e a jorna, no paiol da vizinha , trepidava feito rebentos chocos de distancia atiçando as lembranças daquela senhora já bem idosa.
Incontida, vez e outra ,ela murmurava entre um gole e outro de mate amargo.
"Esta buia da jorna da polaca,.ainda vai estraçalhar meu coração".
Nunca nos revelou sobre este  "estraçalhar " em suas divagações.
Agora, retornando pra casa nesta fria e sem graça tarde de domingo, parece-me assolar aquelas "buias" que queriam "estraçalhar " o coração daquela velhinha em tardes de chuvas mansas, solidões e ventos.

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 25/07/2021
Reeditado em 04/02/2024
Código do texto: T7307328
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