SE FOR AMOR, ME AVISA!

Livro de morfossintaxe na mesa. Olhos concentrados onde a parede encontra o tecto e meus pensamentos flutuando longe. Não sei se termino de ler 'Dikwato, Mortes na Sanzala' ou se começo já a ler 'Meu pé de laranja lima'.

Pressiono o dedo no botão e a tela do smartphone acende. 23h19. Penso na noite anterior e começo a ficar perturbada, ansiosa. Me impulsiono para trás e ouço as rodinhas da cadeira enquanto alcanço a cômoda. Abro a segunda gaveta, tiro o frasco de comprimidos e me empuro de volta.

O telefone vibra de novo. Continua a vibrar. Para. Vibra. Rejeito a chamada, desbloqueio a tela. São agora catorze chamadas não atendidas. Quero bloquear o número porém, meu reservatório de coragem ainda não encheu, minha bolsa de paciência ainda não esvaziou.

Abro a garrafa de sumo, abro o frasco de comprimidos, retiro uma benzodiazepina, coloco na boca e dou um gole de sumo engolindo junto o comprimido branco. Repito o gesto, desta vez acabando o líquido. Limpo a boca com as costas da mão esquerda e pego o celular. Ligo para o número dele. Um, dois e, atende no terceiro toque.

— Oi princesa!

— Para de ligar pra mim!

— Vamos conversar, por favor! - Sinto o arrependimento na sua voz mas não me deixo simpatizar com a dor dele. Na última vez que fiz isso, me magoei.

— Não temos assunto em comum. Nada para conversar. Devolva meu livro 'A geração da utopia' e desapareça da minha vida!

— Estás a fazer drama.

— Estou, eu sou dramática! Acho que vou ponderar a ideia de me tornar uma dramaturga!

— Para com isso e me escuta, por favor! Por gentileza!

— Devolva meu livro e suma! — Desligo. Respiro fundo e me sinto ligeiramente melhor. Um pouco tonta, mas menos ansiosa.

Cancei das promessas não cumpridas e do grande vazio que surge depois que tudo esfria. Cancei das saídas, do cinema, das pipocas e do entrelaçar dos dedos depois que a luz apaga. Cancei de sentar nas cadeiras do fundo só para nos acariciarmos, sussurrar coisas fúteis e não prestar atenção no filme.

Estou exausta, cansada de ser manipulada. De ter que fingir que gosto do meu curso e que tenho um futuro promissor ao conhecer a família.

Estou cansada de ter que me importar, fazer ciúmes, querer ser apresentada nos amigos e conversar até tarde. Cancei de ligar, escrever mensagem bonitas. Estou cansada de começar relacionamentos e terminar pouco depois porque todos eles são superficiais e fingidos.

Prometeu que seria diferente dos outros. Cumpriu a promessa, porque diferente dos outros, se revelou cedo demais. Os outros até fingiram por mais tempo!

O coração é bom em tomar más decisões, por isso preciso do cérebro para ajudar. Assim, com amor no cérebro e desconfiança no coração, espero ter o arsenal completo para esse tipo de guerra. E se até lá eu encontrar alguém, por favor meu cérebro, julgue-o tu! E que vossa magnificência Coração, o desconfie.

Querido cérebro, se até lá encontrarmos alguém verdadeiro, que seja! Se for mesmo amor, me avisa!

Fábio Kintosh
Enviado por Fábio Kintosh em 26/07/2021
Código do texto: T7307474
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