UM REENCONTRO COM A SENHORA DAS DÁLIAS

                      
               (Diário de minhas andanças)
       Aos amigos Gerson Lechiw e Lisy Telles

Domingo intensamente frio,04 d e agosto/2019.
Eu no trecho.
Na paisagem pouco atrativa destes tempos de inverno,sigo em mais uma de minhas andanças.
Eu, meus pensamentos, divagações e a câmera, minha companheira de caminhadas.
Quase ninguém pelas ruas. Ninguém pra se dizer: Olá ! Como vai ? E aquelas costumeiras saudações destes interioranos inveterados aos quais prazerosamente me incluo.
No fim da ladeira da rua Costa Rica, duas figuras aparentemente solitárias, feito eu, vão cerzindo em passos lentos a curva em formato de ferradura que desenha-se logo após os cinamomos despidos atrás de uma cerca de ripas.
Me aproximo, e percebo a terna presença de dona Conceição (a mãe do Gerson Lechiw) e dona Nilda, sua irmã ,recém chegada da capital para uma visita.
Espiam, ambas , sob a ramagem estorricada do outro lado da rua,num terreno vago, os vestígios de bulbos de dálias que haverão de renascer na primavera,com seus abraços coloridos aos beija flores de sol que as visitarão.
[ No terreno vago, as mãos incansáveis de dona Conceição, espargem recados coloridos aos passantes. Dálias e outras flores conseguem a façanha de quebrar a indiferença dos insensíveis e arrebanhar corações de quem ainda preserva olhares para ver as flores ]
Entabulamos uma conversa.
[ Dona Conceição é uma presença suave na tarde agressiva e de suas palavras brotam lembranças que enternecem ]
Falávamos de flores, de pinheiros, de celulares e a frieza de suas modernidades e, claro, daquela casa tão conhecida na paisagem encantadora de Guti, tão carinhosamente delineada nos pincéis de Lisy Telles, tão repleta de histórias.

Relembrei das bolachas de mel que degustava em priscas eras acompanhadas de gasosas, espiando o vai e vem de trens enquanto minha tia confabulava com dona Tecla, proprietária de um estabelecimento comercial naquele endereço.
-Aqui existiu uma pensão, um pequeno hotel, você sabia disso? Profere dona Conceição num tom de indisfarçável nostalgia.
Eram onze quartos onde hospedavam-se os viajantes dos trens de antigamente. A grande maioria vinda de Porto Alegre.O trem chegava à noitinha e os passageiros pernoitavam por aqui.Servíamos refeições,além de lanches rápidos.Os preços, bem inferiores aos praticados no restaurante da estação,os atraía até o nosso estabelecimento.
A princípio era dona Tecla, minha sogra, quem atendia.Mais tarde, meu esposo e eu, tomamos o comando dos negócios.
Esta rua era muito movimentada ! Havia um intenso "ir e vir" de pessoas de tantos e tantos lugares.
A senhora sente saudades desse tempo ? Pergunto-lhe.
- Foi um tempo sofrido, cansativo , mas confesso que deixou muitas saudades.
Aqui, onde hoje estão estas janelas, eram as portas de entrada da clientela.
Chegavam cheios de novidades, falando em sotaques diferentes.
Haviam alguns que adoravam o pão com sardinha que
servia-se aqui.Diziam que havia um sabor diferente naquela "iguaria" .Mantínhamos sempre um grande estoque do produto. Termina a frase com um ligeiro sorriso estampado na face.
Uma certa noite,já cansados, fomos dormir e esquecemos de fechar as portas do bar.Só percebemos na manhã seguinte.Mas eram tempos de muito respeito, bem diferente de  hoje em dia.Ninguém nos importunou e não sentimos falta de nada.
Esta casa brevemente irá passar por uma reforma.É grande demais para mim.Mas confesso que deixará saudades.O dia a dia com minha família, meus filhos, todos crescidos sob este teto...
[ Brota em sua face uma certa melancolia neste instante ]
Ficaria um dia inteiro a ouvi-la. De sua fala suave, mansa, percebia-se o emanar de um coração puro,cheio de saudosas lembranças.
Nos despedimos e segui o caminho. Um vento gelado lambia-me as madeixas e, tomando o rumo das velhas escadarias que davam para a estação que não mais existe, pisei cada degrau travestido de um velho passageiro, um cidadão porto alegrense, talvez, a espera de um próximo trem.

As janelas no sótão do casarão, espiavam-me enquanto o sol esbanjava-se sobre o silêncio do vale.
Um apito à distância denunciava um comboio à caminho de Guti. Me postei à espera e o fotografei.

Não tinha a poesia dos trens dos tempos idos, nem vagões com sonhadores passageiros.
Não apitava como aqueles dos tempos de "dantes", mas o urro dilacerante na tarde de frio intenso o afirmava como...
Um trem a mais ! A caminho da próxima estação.-