Muito obrigada, D. Paulo.

Obrigada, D. Paulo.

Poucas pessoas tiveram e têm importância na minha vida como D. Paulo Evaristo. Ainda garota conheci e passei a acompanhar os passos desse senhor de olhar confiante e firme, com a certeza de que a vida venceria. E ele sabia muito bem que deveria se lutar para que a verdade e o bem vencessem e jamais economizou energia e talento para tanto.

D. Paulo começou a entrar na minha vida de uma forma muito especial e profunda, para sempre, quando da missa de 7º. dia do assassinato do jornalista Wladimir Herzog em 1975. Aquela presença fascinante no altar junto de outras autoridades religiosas, como o rabino Henry Sobel e o presbiteriano D. Jaime Wright, ambos de saudosíssima memória, jamais saiu das minhas certezas: era preciso continuar a caminhada, mesmo sendo sobre pedras pontiagudas, espinhos e muitas trovoadas e escuridão. Era preciso continuar, erguer a cabeça, enfrentar o medo, agir dentro dos princípios cristãos. Ódio? Nem pensar. Apenas sensatez, equilíbrio e bom senso. O culto em memória de Herzog reuniu 8 mil pessoas. Na catedral não cabia mais ninguém e esse ato religioso se transformou na maior manifestação pública de repúdio à ditadura militar em tempos de negação das liberdades individuais, de proibição de manifestações pela democracia, questionamentos, greves e busca de inclusão.

Eu não fui a essa missa. Tudo por obediência aos meus pais, que jamais me permitiriam estar junto de uma multidão na época de um nefasto e abominável autoritarismo. Eu tive que obedecer. Ponto. Mas eu me imaginava lá, olhando para D. Paulo, no misto de angústia, desespero, solidão, esperança e certeza da justiça de Deusa. Deusa sim, porque Ela é mãe, de amor universal, perene, sempre presente, que sabe ser paciente e confia na nossa evolução.

Eu me sentia junto de d. Paulo nas vezes que afrontava com elegância e lucidez os mandantes daquele verminoso governo. Num desses dias tenebrosos, D. Paulo aguardava por horas na sala de espera o atendimento do ditador médici (escrevo em minúsculo) para lhe cobrar satisfações sobre as torturas físicas e psicológicas que corriam soltas nas prisões. Coisa absurdamente institucionalizada. Recebeu um desaforado, diabólico e amargo ”cuide da sua Igreja; das coisas do governo mando eu”. E D. Paulo continuou firme na sua postura religiosa, afinadíssimo com os valores deixados por Cristo. Às vezes eu imaginava vê-lo piscando sorridente para Jesus naquela cumplicidade que só os de coração bonito compreendem.

Fui conhecer sua terra natal, Forquilhinhas, aqui no sul de Santa e Bela Catarina pouco tempo atrás. Cidade linda, macia, naturalmente ímpar. Parece que exala o perfume da sua bondade e da dona Zilda. Na avenida central, várias homenagens à idealizadora da Pastoral da Criança e seu retrato se destaca em espaços iluminados. A casa, antes da família, hoje abriga a sede da entidade.

E eu, quantas vezes na catedral de São Paulo, olhava para o altar à procura do Ilustríssimo Cardeal...

No ano seguinte ao seu desencarne, visitei a cripta. Fui direto onde ele havia sido sepultado e rezei. Ou melhor, conversei com ele num momento de grande desânimo e desapontamento pela nossa realidade, mais perversa, mais elitista, menos inclusiva, mais fantasmagórica, ultrajante... depois das eleições de 2018. Coloquei minha mão sobre os dizeres: “esperança gera esperança”. Saí dali triste porém mais fortalecida. Eu tenho que confiar! Eu sei que estou do lado certo. Não fico apenas me indignando, mas atuando e tenho a certeza da obrigação da partilha.

D. Paulo foi um grande Mestre na sua integridade, na sua honradez, no seu caráter inabalável de um verdadeiro homem fiel à doutrina cristã. Um Cardeal digno do título, que compreendeu a dimensão do cristianismo, compreendeu que fé é também ação, uma ação cotidiana, firme, coroada de lucidez.

E hoje D. Paulo completa o seu centenário.

Sou extremamente feliz por ser sua contemporânea, D. Paulo. Feliz por ter aprendido com sua imensa sabedoria e sensibilidade pelas causas sociais. Feliz por ter assistido algumas palestras suas, inesquecíveis sábias palavras! Fui ao seu encontro, tentei ser uma pessoa melhor me espelhando nas suas atitudes. Lembro do seu sorriso confiante e do brilho dos seus olhos e isso me dá certeza de que o bem vencerá. Com muita sofreguidão, mas vencerá.

Obrigada, D. Paulo. Eternamente, muito obrigada. E imagino São Francisco lhe recebendo sorrindo, abrindo-lhe os braços com satisfação e reconhecimento. Só pode ter sido uma experiência extraordinária! Do tamanho do seu merecimento. Gratidão, D. Paulo.

E também destaco a grandeza e humildade do padre Júlio Lancellotti, com fortes vínculos com a população em situação de rua em São Paulo, pároco na Paróquia São Miguel Arcanjo. A respeito do nosso Cardeal ele se manifesta: “ essa dedicação serve como alimento para que a luta pela dignidade humana e igualdade de direitos seja ampliada. Lembrar o centenário é compromisso, não é simplesmente fazer uma celebração, uma memória, mas é um compromisso de continuarmos a luta por essas esperanças, a luta pelos direitos humanos, a luta pela dignidade da vida, a luta pelos pobres, pelos esquecidos, pelos abandonados, uma luta de compromisso e transformação. Este momento que cabe a nós viver é um momento de alimentar a esperança sem criarmos conflitos, mas enfrentando os conflitos que são postos, os conflitos que estão presentes”.

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Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/09/2021
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