Cai bem aqui um palavrão! Fiquem à vontade

Um naco de sol entrou pela fresta da janela anunciando o inicio do dia. Apesar do inverno, o calor predomina e o ar seco traz de longe o cheiro de mato queimando. Brota um misto de incredulidade e raiva devido à insensatez humana. Cerrado e pantanal sob os olhares de cifrão de produtores de soja e carne bovina.

 

Lá fora, para além das paredes do quarto, o ruído ensandecido da cidade é desafiado por uma dúzia de passarinhos momentaneamente abrigados no galho da solitária tipuana na calçada. É possível acalentar a alma com as notas harmônicas, entre graves e agudos, de sabiás, sanhaços, bem-te-vis e corruíras. Ah sim! Têm as maritacas também, mas essas são musicalmente rebeldes. Mas, seu grito amalucado traz uma alegria imensa. Verdes com detalhes em vermelho estão banqueteando na palmeira jerivá detrás do muro na esquina.

 

Por essas horas o cheiro do café no coador já inunda a cozinha enquanto o locutor da rádio narra e-mails recebidos de ouvintes.

 

Incrédulo, ouço:

 

- Eu não consigo dormir, já reclamei na prefeitura e nada, tem um pássaro que começa a cantar quatro da manhã (...).

 

Acontece, em outra ocasião lembro-me que alguém reclamava das folhas de uma árvore que sujava a calçada. Num gesto de indignação que termina em pura raiva, fico imaginado o estereótipo dessas pessoas, e termino por concentrar na figura de uma senhora em camisola de cetim, todas as qualidades ruins que um ser humano é capaz de expressar. Há quem diz que a folha que cai das árvores é lixo que suja as calçadas e que o sabiá laranjeira, com o seu canto doce, é praga. cai bem aqui um palavrão! Fiquem à vontade.

 

Outro dia desabava fuligem do céu enquanto uma névoa de fumaça cobria a cidade. Enquanto isso o rádio fala de uma escassez hídrica recorde para o ano em curso, com falta d’água nas torneiras e energia nas tomadas, os rios secam. O bicho homem avança sobre o que ainda resta das florestas, ganância.

 

Oras o que temos aqui? A felicidade baseada no consumo. Sim, é o combustível perfeito para a insensatez, há tempos o deus mercado converteu muitos em consumidores cegos, numa lógica de acumulação de coisas inúteis. É uma equação onde a aquisição da hora é apenas um incentivo para a próxima compra. O gozo momentâneo da conquista material é tênue e superficial, a felicidade nunca chega, a conta não fecha.

 

O caminho certo é outro, ser mais, eis a questão. O melhor da vida dinheiro não compra... O tempo que passa; o mar; a luz do sol; o vento, as folhas na calçada e o canto dos passarinhos. A vida puramente material mercantilizada é superficial e anacrônica. Leva as pessoas a correrem apressadas em busca de coisas inúteis enquanto o mundo desmorona. Nessa corrida do ouro todos perdem! Sinal de que a sociedade está doente, enquanto o mundo desintegra pela ação do homem, há quem se incomoda com o canto de pássaros inocentes.

 

Tudo bem, nessa altura de setembro a aproximação da primavera é um alento para o deserto de sensatez que é lugar tão comum lá fora. Há muito que desconstruir nessa lógica doentia, que a primavera traga mais sabiás, tipuanas, aroeiras, bem-te-vis...

 

Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 14/09/2021
Reeditado em 07/12/2021
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