Alfabetização e cultura escrita

A comemoração dos cem anos de Paulo Freire me traz à lembrança um episódio narrado alguns anos atrás por um educador de adultos que atuava na zona rural do Piauí. Alfabetizava uma senhora na faixa dos sessenta anos, com filhos morando em São Paulo, fugidos da vida incerta e dependente da chuva, tão comum no sertão nordestino, que ao ser inquirida do porquê de ter se interessado em aprender a ler e escrever, naquela idade, foi taxativa: “- para ter segredos”. Sem as facilidades que são propiciadas hoje pela tecnologia, o celular como melhor exemplo, só lhe restava como possibilidade de contato com a prole distante, as missivas, lidas e escritas por amigos letrados. E aí o segredo ia embora!

No Brasil, mesmo no século XXI, são ainda milhões de pessoas nessa condição com dificuldades, além de redigir um pequeno texto, de identificar o destino de uma condução, ler a receita de um remédio, receber o pagamento em um banco, identificar o vencimento de uma conta ou conferir preços num supermercado, causando transtorno na sociedade letrada e digital em que se vive.

Pela Declaração de Hamburgo de 1997, da qual o Brasil é signatário, a alfabetização é concebida como o conhecimento básico, necessário a todos, num mundo em transformação. Tem o papel de promover a participação em atividades sociais, econômicas, políticas e culturais, além de ser um requisito básico para a “educação ao longo da vida”, para citar o relatório da Unesco para o século XXI.

Concordando que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, (salve, Freire!), o certo é que ao se tornar leitor da palavra, a partir daí o mundo será lido sob a influência dela, quer se tenha consciência disso ou não. Dominando a cultura escrita a pessoa tem a oportunidade de construir uma nova concepção de mundo, sendo capaz de compreender o que chega por meio de leitura, analisando e posicionando-se criticamente frente às impressões colhidas, o que se constitui num dos atributos que permitem exercer, de forma mais abrangente e complexa, a própria cidadania. Quanto mais se sabe, quanto mais se conhece, quanto mais se tem informação, melhor poderá ser feita a leitura do mundo.

Dizia Monteiro Lobato que “quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”. Quem mal lê muitas vezes nem se dá conta, por exemplo, da existência de placas indicativas presas nos muros, nas esquinas, informando o nome das ruas. O que ouve nos discursos políticos tem um significado diferente de quando se lê um jornal ou revista, que mostra o outro lado da notícia, e assim passa a entender que o calçamento da rua, a praça construída, a rede de águas e esgoto instalada, a construção de estradas, a bolsa família que recebe, tudo isso é uma obrigação dos governantes para com a população, já que afinal, foram eleitos para gerirem e aplicarem bem os recursos públicos em proveito de todos os cidadãos. A cultura escrita, além do conhecimento, vai lhe permitir o discernimento para pensar por si e tirar as suas próprias conclusões sobre tudo. E junto com isso um vasto mundo que se abre a partir da leitura, com muitas viagens para fora de si.

Fleal
Enviado por Fleal em 21/09/2021
Reeditado em 21/09/2021
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