O VISITANTE

Se o céu de Aracaju é, por si só, diferentemente azul, naquele dia, varrido em fiapos de algodão, viu o tempo estacionar num espetáculo de luz e cor que artista algum conseguiu colocar em tela .

A cidade, considerada provinciana, empinou o busto, aprumou a cintura, arrufou a saia rodada, pisou faceira nos saltos Luís XV. Passou um pouco de pó-de-arroz Promesa, batom Palermont e perfume. Enfeitou-se com suas jóias , preparou-se para o grandioso evento.

As emissoras de rádio tinham apenas um assunto. Os poucos jornais, cada um com quatro folhas, exibiam manchetes em letras garrafais(assim se dizia àquela época).

As ruas e avenidas ostentavam aquele ar intraduzível de feriado nacional. O quartel da corporação dos bombeiros, engalanado em vermelho e cáqui, treinava diversos toques ao longo da rua Siriri. O único caminhão, lustroso, estacionado no pátio, esperando o toque para o momento da festa.

Nas residências das três classes sociais, as moças, quase em histeria, enfrentavam qualquer obstáculo para garantir presença no evento. Os rapazes juravam não comparecer, mas compareceram. Os maridos, divididos em dois blocos: o menor, dos metidos a modernos; o maior, dos machões. Estes trancaram suas mulheres, proibindo-as até de acompanharem o noticiário e a novela predileta. Eram providências para demonstrar quem mandava dentro de casa. Não se esquecesse qualquer uma delas que "lugar de mulher é na cozinha".

As avós puderam ficar ao pé do rádio. Os seus maridos achavam tudo aquilo "um despropósito, uma falta de vergonha".

De empregadas domésticas ("crias da casa") a médicos, juízes e desembargadores, o objetivo era só um: presenciar a chegada do ilustre visitante.

Os coletivos passavam lotados de ansiedade e alegria em direção ao Aeroporto Santa Maria. Seriam duas festas, uma para ver o avião e outra para recepcionar a personalidade que vinha dentro do engenho.

A polícia organizava. O governador não falhou e, quando percebeu a intensidade da euforia popular, chegou a aventar a possibilidade de convidar um batalhão do exécito para abrilhantar a festividade. O prefeito, para não ficar para trás, pensou em convocar de imediato a banda de música municipal_aquela que não podia faltar nos enterros de gente importante. A primeira dama conseguiu evitar o que considerou um exagero. O arcebispo pensou tantas coisas, mas fez algumas orações para evitar a tentação e conseguiu ser ouvido.

As famílias tradicionais esticaram toalhas de renda irlandesa sobre o parapeito das janelas para ornamentar a rua por onde o visitante passaria. O vento contribuiu abanando não só as franjas das toalhas, mas também as cortinas entre as quais surgiam as mais sofisticadas jovens da high-society local.

No hotel, o único decente, reservado há um mês de antecedência, haviam intensificado os preparativos. Os fotógrafos encontravam-se de prontidão. Os jornalistas apertavam nas mãos blocos de anotações

e canetas, temerosos. Não poderiam perder os furos naquela rarísssima oportunidade. Cronista sociais em transe sonhavam aparecer nas colunas, abraçados ao convidado. Dois ou três ricos insistiam para que o rapaz ocupasse espaços em suas suntuosas residências. Primeiras e segundas damas prepararam recepções e bingos. Freiras ensaiaram cançõezinhas angelicais.

Caravanas do interior chegavam, mais numerosas do que as levas de retirantes. Pelotões colegiais, acompanhados de diretoras ensimesmadas, desfilavam ao som de bandas marciais. Um helicóptero e um teco-teco sobrevoavam a cena, tentando roubá-la.

Vivia! Viva! Olha lá! Lá vem! Vejam! Ai, que lindo!!!

Todo mundo ria , chorava e gritava simultaneamente. Muitas pessoas desmaiaram. Crianças perdidas choravam procurando as mães.

E o avião, bonitão, pomposo, autoridade máxima, dono e senhor do objeto de desejo.

Meu Deus! Minha Nossa Senhora da Conceição! Está descendo muito devagar. O que foi? O que será? Vai cair? Vai explodir? O arcebispo juntou-se às freirinhas e, de mãos dadas, começaram a rezar pelo sucesso do pouso e completo estacionamento da aeronave. Deu certo.

O caminhão dos bombeiros começou a se movimentar na direção da escada por onde desceriam os passageiros. Nada de a porta abrir. Chegaram os seguranças. Um bêbado ao meu lado perguntou: Quem é o defunto?

Abre-se a porta.Quanta gente! E ele? Cadê? Onde está? Não veio? E , se veio, por que não desce? Crescia o suspense.

Enfim, a explosão de um sorriso coletivo iluminou o ar. Aparece o ídolo, em carne e osso.

Roberto Carlos Braga, em sua primeira visita à Aracaju. Não beijou o chão porque um Papa ainda lançaria a moda algumas décadas à frente.

Os bombeiros ficaram duros. Pareciam soldadinhos de chumbo. Foi aí que Roberto entrou em um carro de passeio.

No retorno ao centro da cidade, em um vestido feito para a ocasião, com motivos das calçadas da praia de Copacabana, passei lado a lado, janela a janela, carro a carro. O rei sorriu e acenou para mim.

27/11/2006