Casos de família.

Era outono quando entrei naquela casa pela primeira vez.

Eu sentia uma apreensão calada, sem definição. Era a minha primeira incursão na casa da minha futura família.

Era noite. Vi meu futuro marido muito tímido em função da simplicidade daquela casa. Ele estava mais quieto, constrangido.

Foi numa noite que comecei a aprender a acolhida de forma plena, porém igualmente reservada, sem muitas falas e nem muitos risos. Acolhida formal somente. Até um tanto cerimoniosa.

Não sei dizer o que senti. Tudo muito estranho. Jamais eu tinha ido à casa de um namorado. Eu não sabia como era. Se era motivo para grandes abraços ou uma mera reunião protocolar. Não sabia se haveria momentos para grandes sorrisos, de brilho nos olhos ou se seria um momento para se dizer pouco ou quase nada das alegrias da vida.

Era outono e eu sabia disso.

Tempo em que as folhas velhas caem. O chão das praças fica lindo. De qualquer praça. Folhas amareladas, secas que, ao vento, embaraçam pensamentos e sentimentos antigos que já não valem muito, não convencem tanto. O vento leva as folhas velhas na sua suavidade e leveza para onde o coração não alcança mais.

Nas outras estações eu continuei a frequentar a casa. E a casa ia dando ares de uma primavera lenta qual um pé de manacá que não floresce repentinamente permitindo que suas folhas brancas e arroxeadas possam sorrir para o sol. A energia da luz foi se definindo aos poucos e eu fui descobrindo um universo absolutamente novo.

O dono da casa, escultor de longa data. Entendia da arte e havia sido especialmente criterioso no sua delicada função. Um humanista de poucas palavras sobre o assunto. Antes de sair para o trabalho, tomava um prato de mingau e retirava água do poço para que a esposa tivesse meios de cuidar das tarefas, da roupa e comida da família.

A esposa garantia bons contatos com os familiares, dava aulas de corte e costura e tinha uma mão inigualável para as massas. Ao longo do ano, ia comprando as latas de leite condensado para os aniversários dos três filhos. As forminhas para os brigadeiros e cajuzinhos. O trigo para as futuras empadinhas. As garrafas de tubaína também eram compradas aos poucos. E no armário ia guardando todos os ingredientes necessários para o grande momento da confraternização. Sim, todos os aniversários eram comemorados com muita alegria e todos os parentes certamente marcavam presença .

E os três filhos, os três meninos, sabiam dar conta dos cuidados da casa. O mais velho passava a cera Parquetina. O mais novo se sentava num pano e o do meio arrastava o caçula que, com o traseiro, lustrava toda a casa, que se resumia a duas salas e um quarto. Tinha também um pequeno corredor.

Na sala permaneceu triunfante uma mesa e as oito cadeiras que foram compradas para a festa de casamento do filho mais velho quase meio século atrás. “De madeira mesmo”, disse um dia a minha sogra, batendo no tampo com os nós dos dedos da mão direita. Era o móvel mais nobre da casa. Numa dessas cadeiras um dia eu a surpreendi sentada e rezando em voz alta para o bem de toda a família.

Na cabeceira, o meu sogro gostava de ler a Folha de São Paulo, embaralhando todo o jornal, misturando os cadernos, para meu desespero. Mais desesperador ainda era quando eu ia ler o jornal e não o encontrava. Eu perguntava então ao meu sogro:

-“Seu José, onde está o jornal?”

-“Eu dei pro vizinho. Você queria ler????”

Jamais deixei de ler o jornal um dia sequer. Mas ali eu aprendi que nem sempre isso seria possível e eu teria que ter paciência com a atitude dele. Em outros dias eu teria que correr, chegar primeiro, pegar a Folha e me apoderar dela... mas às vezes eu me atrasava.

Ali, naquela casa, a minha sogra guardava para eu raspar o fim da lata de leite Moça. Ali também o meu sogro lavava a xícara onde minha sogra reservava a clara para bater em neve para algum bolo. Ela ficava furiosa demais nessa hora.

Foi ali também que os aniversários do meu filho foram comemorados com muita alegria, brigadeiro e cachorro quente. Mas tinha também bolinha de queijo, coxinhas e empadinhas.

Foi naquela casa que, apesar de ter apenas os livros do meu marido, aprendi muita filosofia. Sem teorizar nada, mas filosofia pura. Aprendi a respeitar limitações naturais de uma pessoa, aprendi a lidar com a fragilidade financeira sem tanta ansiedade e nervosismo. Aprendi que cuidar da casa e da comida não é sinal de masoquismo ou de submissão: era cuidar e pronto. Também aprendi que ir à feira pode ser prazeroso e – ah – aprendi a lidar com a magia de comer pastel de feira. E nada era proibido. Viver não era proibido. Rir era sinal de satisfação verdadeira e podia sim se rir de muitas coisas, de situações passadas e presentes.

Foi ali também que o quintal foi transformado num campo de girassóis pelas mãozinhas da minha sobrinha. Naquele quintal também o coelho Pierre saltitava e, um dia, sumiu sem deixar rastro.

Na parede da esquina ao lado da casa, o meu marido, ainda criança, e outras tantas pessoas, assistiam à noite filmes projetados por algum vizinho sonhador...

A casa... o luar da Vila Sônia... a igreja de São Benedito... a rua de mão única... a feira na rua de baixo com as roupas penduradas, o pastel do japonês, as barracas de peixes, a única barraca de doces, o baiano ralando coco, o outro vendendo vassouras, espanadores e desentupidores de pia. O outro, com as bandejinhas de alho... O outro vendendo sapatos...

Há décadas a casa está sendo restaurada e ampliada. Agora falta muito pouco.

Aquela casa é um memorial. Um verdadeiro monumento de valorização da vida, das gentes, das histórias, das pessoas que vão e que vêm. E sempre são bem vindas. Ficam as fotos, os sorrisos, os quadros pendurados, aquela mesa, umas tantas panelas...

Fica registrada uma parte da história de São Paulo, quando meus sogros, filhos de imigrantes italianos e espanhóis, chegaram sem nada nas mãos mas com tudo para construir e sonhar. E a família era a única possibilidade de segurança emocional e também material.

E depois do portão, após a porta de vidro que dá entrada para a sala principal, vai estar destacada a placa de homenagem:

Esta casa pertenceu a José Moratta Franco e Brazilina Granados Moratta, pais de Nilton, William e Nelson.

A eles nossa gratidão pela grandeza do esforço, dignidade, pela herança da ética nas atitudes e beleza nas almas.

Família Moratta.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/10/2021
Reeditado em 05/10/2021
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