A vida é um suspiro.

Mudança! Era o que aquela ainda menina queria ouvir e viver. Saber das pernas não amarradas, prontas para caminhadas com algum par de sapatos mesmo velho. Nem precisaria ser macio. Nem seria preciso ter cadarço. Bastaria poder andar, sentir o sol ou a chuva, o sereno, o vento.

O outono já bocejava, dando sinais de que pegaria no sono dentro de poucos dias. Resolveu que descansaria pelo tempo de uma gestação. Não me lembro se o inverno fora intenso. Ou seco. Não importa. Mas deve ter sim sido rigoroso. Começamos a ouvir que, no Paraná, se falava em acolchoado feito com lã de carneiro. Era um tipo de cobertor pesado que me doía os braços ao dobrar cada um e o tio Dante logo tomou a iniciativa de trazer alguns para nós. Hoje se fala em edredom. Que nome mais sem graça!

De mãos dadas com a irmã caçula, lá fomos para a casa nova acompanhadas da minha avó com o braço direito recém quebrado envolto num gesso, na época, torturantemente pesado. Fomos lentamente. Deixamos o apartamento, minha primeira moradia, para trás. Gostaria que o piano tivesse ficado ali trancafiado para sempre, como numa masmorra, mas não ficou. Ele foi me acompanhando através de um caminhão da Lusitana como uma sombra macabra a me manter refém de um tempo em que as mulheres deveriam aprender desde cedo a amarga submissão e agradar as visitas.

O cheiro de tinta a óleo da casa nova me seduzia. E se fazia silêncio como que para se ouvir e perceber os detalhes, a escada de madeira, a pesada porta da entrada. Ouvia-se o silêncio nos dois quartos, na cozinha. No quartinho dos fundos a antiga moradora havia se esquecido na parte de dentro do vitrô uma batata e uma cebola e achei que poderiam ser bem aproveitadas.

Perto do tanque, a minha avó colocou um vaso com antúrio. No banheiro, a água escorria da torneira com preguiça. No quarto, a cama da minha avó, a minha, colada à parede, e a do meu irmão. Um único criado mudo e o guarda roupa que seria dividido entre todos. A minha gaveta era a segunda. Dentro dessa gaveta, junto com as roupas, eu também guardava recortes de jornal com matérias consideradas importantes para a época. No outro quarto, os meus pais e a minha irmã.

Casa de bairro operário, construída por imigrantes italianos no começo do século. Vários sobrados geminados rigorosamente iguais. Bem próximo, a antiga fábrica de chapéus Ramenzoni amargava seus últimos suspiros em função da mudança dos hábitos e da moda. O colégio Marista – meu colégio Nossa Senhora da Glória – abrigava os filhos de uma suposta classe média do bairro. Eu me tornei aluna do Glória em 1970 quando as meninas tiveram permissão para serem matriculadas e, um dia, o professor de Francês disse que éramos a desgraça do colégio. O professor Peixoto morreu enfartado na fila de um cinema e ninguém chorou sua passagem.

Na rua, a vizinhança sempre calada e firme no seu recato. Na esquina, o bar da dona Carmela onde havia uma pequena estante com doces baratos. De vez em quando, um docinho de leite marca Confiança. Podia ser também pé de moleque. Lanche Mirabel nem pensar. A rua de paralelepípedo.

E eu olhava à noite pela janela para a avenida logo abaixo e me encantava com aquelas luzes. Quase ninguém tinha telefone. E quando tínhamos notícia de algum parente era assunto para horas a fio e sempre com muito contentamento.

Carro era só fusca e, mesmo assim, eram poucos. Um vizinho tinha um Galaxy azul claro e chamava a atenção pela elegância e potência.

Num dia de setembro o meu pai chegou em casa radiante com o seu novíssimo fusca vermelho. Ainda me lembro da placa. Era uma quinta feira, dia de macarrão com frango. Fomos até a porta aplaudir mentalmente a sua conquista com muitos sorrisos e orgulho. Rápido, o meu pai foi procurar um estacionamento para poder garantir com segurança sua compra e voltar para o almoço. O fusca quase nunca saía de lá, pois o meu pai jurava que era preciso amaciar o motor.

E eu implorava para sairmos para passear e a resposta era sempre a mesma:

- “ Precisa amaciar o motor”.

Eu não entendia como amaciar o motor se o carro estaria sempre parado... então, prá mim, o fusca vermelho passou a ser símbolo de negatividade, de frustração, pois eu estava sempre louca para conhecer alguma coisa da minha cidade encantadora e não acontecia absolutamente nada.

Mas eu haveria de caminhar, de alguma forma eu haveria de caminhar, de saber como o mundo seria lindo, quem sabe até musical, colorido.

E, sonhando inocentemente, com paixão pela vida, pela fome da descoberta das coisas do mundo, eu ia construindo a minha vida futura... e como sonhava!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 08/10/2021
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