3 - Modernidade

"O tempo é um dos deuses mais lindos", conforme os compositores do Legião Urbana. Concordo. E vou falar sobre ele, o tempo.

Estou pensando que é "através do tempo que se vive", e não “no tempo” ou “com o tempo”.

Viver com o tempo me parece negativo demais, como alguém que espera uma hora para começar a viver.

Viver no tempo me diz sobre limitação: vivo no tempo, mas não me importa viver no espaço, no coração ou na alma.

É "através do tempo" que eu vivo.

Através: passando por ele.

Através: fazendo uso dele.

E não é que, passando por ele, coisas muito interessantes são capturadas pelos caçadores diligentes na vigília? Olhos atentos enxergam aquilo que buscam. Olhos desatentos são mais comuns àqueles que vivem "no tempo" ou "com o tempo", e lhes escapam maravilhas. Mas acredito que o que irei falar agora já foi visto pela maioria dos olhos: a chegada da modernidade.

A modernidade chega onde há tempo. Ela deixa de ser peixe e torna-se anfíbia com o tic-tac do relógio, arrasta-se para fora das águas do passado e avança pelas areias do consciente de uma mente que já não é de criança. A camuflagem da modernidade é percebida pelos olhos atentos de um caçador que, já faz bons anos, veio à existência a partir de sua concepção. Modernidade faz referência ao nascimento de uma pessoa, o que a qualifica como um termo relativo.

Pois é chegada, para mim, a modernidade. Vou contar um caso particular. Antes eu lia livros. O cheiro de um livro novo é algo que invoca um prazer escondido em algum recanto do inconsciente. A aspereza do papel, as orelhas de capa, o peso... Tudo compõe um mosaico de libido e beleza.

Mas o peso incomoda! Como a natureza é misteriosa, o peso das coisas aumenta com o tempo que você as segura. Acho que isso pode valer para relacionamentos, talvez. Quem sabe. Mas incomoda, a posição tem que ser ajustada constantemente ao se ler um bom livro. À noite, eu ainda não consigo ler sem a luz de um abajur. E pode acontecer de ter gente por perto para reclamar dessa iluminação.

Então eu resolvi aderir à modernidade e comprei um aparelho para leitura de livros digitais. Estou maravilhado! Perdi o tato do livro novo, o cheiro, as cores da capa. Mas ganhei a briga contra o peso e a luz noturna, pois tal aparelho tem luz própria com ajuste, de tal forma que posso ler no sol ou no quarto escuro, sem incomodar mais ninguém.

E vejam só! Agora posso comprar meus livros pelo aparelho, sem nem me dar o trabalho de levantar da poltrona. Outra coisa interessante é a possibilidade de se fazer consultas a um dicionário sem ter um dicionário do lado.

Minha afilhada, hoje com 12 anos de idade, não tem um aparelho desses. Ela adora ler seus romances épicos apropriados para sua idade, e até me espanta o volume de livros que ela lê! Por isso dou graças pois, na idade dela, eu não fazia nada disso. Para ela, a modernidade ainda não chegou: é um peixinho ainda no mar. Talvez um dia crie suas patinhas e vá para a areia.

Não me oponho, não sou a favor: sendo algo relativo, a modernidade também é subjetiva. Sendo subjetiva, diz respeito ao indivíduo que a experimenta. Cada indivíduo é único. Você pode até entrar na alma de alguém, mas vá de visita e siga as boas normas da etiqueta.

A modernidade é só mais uma das belezas do deus tempo. Uma surpresa que ele guardou para cada alma individual que atravessa as trilhas de seu reino, em ritmos diferentes, em direções distintas. Mas inexoravelmente para frente!