25 de DEZEMBRO

Anita, ali entre os manequins da vitrine de uma butique no shopping, imitava os gestos da personagem do filme que acabara de assistir, graças ao lucrinho dos vales-transporte que vendera durante a semana.

Para aquela noite programara presentear a si mesma. Em seu casebre pendurado numa encosta da casa de detenção da cidade, não havia presentes, ceia, família reunida. Ouvia-se por ali as sirenes dos carros de polícia e das ambulâncias.

A festa de fim de ano ficava invariavelmente adiada para o próximo. Anita via mais uma vez as famílias seguirem para suas casas, apartamentos, mansões. Alguns dirigiam-se para vermelhos restaurantes onde havia árvores iluminadas e sorrisos especiais guardados cuidadosamente durante mais de trezentos dias. Tudo igualzinho às revistas. Sinos tocando, aliás, bimbalhando enquanto apresentava-se a peça ensaiada _ agora em efeitos de fazer inveja a Spielberg.

A praça de alimentação vazia exalava um aroma azedo de vômito. Sobre o vidro suado da estufa de salgadinhos, uma velha barata passava, mole de gorda. Nas lojas os manequins sorriam dementes para o hall abandonado. King-Kong, fora da tela, realizava suas fantasias eróticas e selvagens _ um pouco ccontrariado e mais violento porque achava a loura da produção anterior mais sensual.

Murchos pacotes de chocolates. Os aparelhos de TV apresentavam telas escuras como um céu de tempestade. O automóvel exposto na plataforma dormia de cara feia, sonhando com o asfalto onde poderia correr desembestado em sua potência.

Cada papai noel ficara paralisado no exato gesto de estátua. As caras cínicas dos duendes fingiam-se esquecidas dos presentes prometidos a todas as crianças do planeta. As luzes descansavam da missão de hipnotizar clientes. Conseguiram, piscando, convencê-los a consumir inutilidades e sonhos repetidos. Uma outra barata, mais moça, entrou e saiu pelos furos do nariz do Papai Noel instalado no espaço nobre do shopping. Uma ratazana desenfreada esbarrou no rodapé da porta eletrônica, retornou para o supermecado, entrando espremida pelo cantinho da porta ondulada. Subia um odor horrível das bocas-de-lobo. O vigilante fiel apitava para proteger aquele mundinho fútil-útil.

Anita, pela vidraça, avistou do outro lado da avenida, famílias organizadas, portadoras de antecedentes históricos, trocando abraços entre amigos revelados e votos da felicidade adquirida e copiada dos comerciais de TV e dos out-doors.

Quietinha no presépio, Maria acalentava o menino cuja sina é chorar a sorte da humanidade dividida, desigual.

Anita adormeceu aos pés daquela familia.

2/1/2006