Foi naquele dia da criança.

A chuva fina já deixava marcas indeléveis naquele chão irregular, com uns tantos buracos e pedriscos a esfolar dedos e calcanhares além das sandálias com solado gasto pelas andanças.

O vento gélido provocava sucessivas ondas de arrepio naquelas peles finas das crianças de cabelos despenteados que, curiosas e famintas, se aproximavam daquela porta.

Algum presente, será? Ah, eu gostaria tanto que viesse uma bola, uma boneca ou uma caixa de lápis de cor.

Seria o único presente, quem sabe, o único do ano... Viria embrulhado? O que será? O que seria?

A mãe não pode comprar nada, nenhuma lembrança por menos cara que seja. O pai nem fala mais nisso. Apenas arrisca um sorriso xoxo, amarelado, desviando o olhar. A dinda tem muitos afilhados e nem balas vai poder lhes dar.

Mas vai ser o dia da criança! Será que eles, os adultos, vão se lembrar? Será que vai ter um bolo, um copo de coca, alguma brincadeira? Pipoca? Um presente seria tão bem vindo!!!

Aquelas crianças pensavam, quem sabe até conversavam com os seus iguais e, de olhos arregalados, olhavam apreensivamente, tentando imaginar o que haveria atrás daquela porta.

Lá dentro, no salão atrás daquela porta, algumas pessoas pensavam na humanidade, no respeito, no poder do sorriso e no valor do abraço. Pensavam também que era possível ser feliz, acreditar no divino e cooperar com a força inenarrável da primavera fazendo a esperança florescer. Antes de abrir a porta – aquela porta - cantaram a oração de São Francisco e agradeceram pela vida.

Aquelas pessoas se puseram a embrulhar presentes. Antes, se mobilizaram para arrumar algum dinheiro, ir às compras, falar com a vizinhança pedindo algum brinquedo mesmo usado. E arrumaram dinheiro para comprar as salsichas e fazer mais de mil lanches, os sucos e levaram das suas casas os bolos com cobertura de chocolate e balinhas coloridas. E trataram de cortar os bolos, colocar os pedaços generosos e coloca-los em caixinhas individuais. A equipe esbanjava energia, cooperação, parceria e bom humor. Alguém parava para varrer o chão exaurido pelas andanças, enquanto outra recolhia os farelos que caíam dos pães cortados para levar para casa e dar de comer para os pássaros que a visitam religiosamente no terraço do seu apartamento térreo. Outros preparavam os sucos... e os outros... e as outras...

Resolveram se esquecer que os energúmenos que ocupam os confortáveis camarotes do poder nos querem mortos, doentes e desassistidos e, claro, analfabetos e sem voz. Naqueles dias de preparação e envolvimento fizeram de conta que os sádicos estavam exauridos das suas atrocidades contra os humildes. De tão fatigados pela sandice e deboche e de tanto tripudiar sobre corpos esquálidos, os monstros resolveram cochilar um pouco e ficar na horizontal pensando nas próximas edições de crueldades. Fingiram esquecer que os algozes do povo se riem, gargalham alto e de boca aberta, achando que os mais simples devem comprar ossos ou carcaças de peixes para fazerem uma sopa enquanto se locupletam a partir da nossa desgraça. Aquele povo disposto a fazer um dia lindo resolveu brincar de fazer de conta ...

Existe a fé, a certeza da bondade divina, o enorme desejo de sentir a doçura do sorriso de uma criança pobre e o alívio da mãe ao ver o filho de posse de um presente e um lanche... a mãe que, como dizia Quintana, só é menor que Deus.

Existe sim uma energia que teima em acreditar na vida, mesmos sabendo que a pátria mãe não está sendo nada gentil, que a mesma sucumbiu à mediocridade, à insanidade, à falta de decoro, à indecência em benefício de uma corja retumbante.

Mas temos que resistir incessantemente à barbárie, à soberba, à canalhice por ora institucionalizada. Mesmo nas pequenas ações, na simplicidade, e sempre no esforço coletivo, resistir e nos envolver na tarefa de partilha. Partilha do nosso tempo, do nosso pão, do nosso afeto, e também a partilha do conhecimento, da reflexão, das atitudes altruístas, valorizando os nossos iguais e sempre em busca do bem estar social. E ter a coragem de construir novas possibilidades, diferentes pensares, valorizando crenças de que é possível fazer o bem vencer o mal e termos diante dos nossos olhos algumas crianças felizes e com horizontes de paz e serenidade nas almas.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/10/2021
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