MEUS TIPOS INESQUECÍVEIS - NHÁ PAULA

                                        FRAGMENTOS (18/10/21 21:33)

 

 

Nhá Paula, a russa , morava numa casinhola no fundo do terreno de João, um de seus filhos.

[ Seo João Russo, o sorveteiro ! ]

Este,de idade já avançada e tendo herdado o carisma da mãe, era talvez a figura mais aguardada nas manhãs daquela comunidade.

Um terreno em declive, abrigava a casa de João na parte alta, e próximo ao riacho , delimitada pela cerca de ripas, a casa de sua mãe.

Singela, a pequena casa abria-se para o mundo num olhar festivo de duas janelinhas que pareciam estar sempre sorridentes.

Esparramada - literalmente - sob o pé de gabirobas, a idosa unia um a um os retalhos coloridos que resultavam em belos acolchoados, enquanto o filho polia a charrete de sorvetes.

Havia sempre muita lã de ovelhas ao redor da artesã e a algazarra dos marrecos ao longo do córrego de águas mansas, vez e outra confundia-se com as estrofes de hinos religiosos que ela entoava entre um cozer e outro.

Era um vozeirão desentoado espalhando-se pelo vilarejo, de ouvidos já acostumados com os trechos de sua preferência:

-"Os anjos///Todos os anjos///Louvem a Deus para sempre, amém..."

Pairava no ar um clima de encantamento naquele espaço por onde uma sinuosa estradinha de chão conhecia com detalhes os segredos de nossos passos.

Nosso mundo resumia-se às incursões mata a dentro, as pescarias, um aceno e outro à velhinha russa ,sempre correspondido com um sorriso azul brotado feito um narciso daquela face enrugada.

E quando as manhãs iam ganhando consistência...

A olaria, feito uma fera acuada, urrava o apito das dez e meia.

Nós, a molecada, já apostos sobre a ponte do rio das Antas.

Não demorava e a charrete cor de abóbora puxada por um cavalo preto surgia ao longe entre as araucárias.

O apito do sorveteiro, tão sonoro feito uma canção,era leve, carregava requintes da magia daquelas duas casas russas incrustadas num terreno bordado de repolhos , escarolas e beterrabas.

As águas rolavam mansas por debaixo da ponte refrescando as avencas que,feito moçoilas debruçadas em soleiras de janelas, jdeixavam que a correnteza lhes molhasse a ponta dos seios fartos.

Seo João Russo nos servia os picolés , na  maioria das vezes trocados por garrafas.

[ O dinheiro era curto já naquela época.]

Depois, num breve aceno deixava-se engolir por novos túneis de araucárias a caminho do Riozinho, para só retornar ao urrar da fera no dia seguinte.

Acompanhávamos com olhos de carinho até que a charrete sumisse de nosso campo de visão.

Restava pelo ar os acordes do apito do sorveteiro e alguns poucos rumores pelas casas na vizinhança.

Sobre a ponte, nossas camisas de panos baratos, testemunhavam alegrias de amizades ungidas aos sabores de groselha e chocolate.

O riacho murmurava a canção dolente das águas que se vão do nada pra lugar nenhum, e a vida seguia mansa e serena feito o pouso de um tico tico no portão da casa paterna.