Essência

Interrompeu minha concentração um senhor idoso de olhos caídos que se oferecia para confeccionar carimbos.

Não precisando deles, agradeci a visita gentilmente. Talvez eu tenha fitado seus olhos com profundidade ao responder, o que incitou sua disposição de conversar.

Regressara a pouco de uma viagem sem boas lembranças e pelejava pela continuidade da vida...

Seu semblante prostrado denunciava um desalento que intuí no momento em que cruzei seus olhos úmidos.

Perdera sua esposa, a companheira de 62 anos felizes em que desconhecera um só dia de malquerença na relação.

Emudeci admirada diante da descrição carinhosa que ele tecia da sua parceira: uma “mulher linda e muito delicada, um amor da vida inteira...”.

Percebi sua voz obstruída enquanto tentava descrever a dimensão da saudade que o afligia...

Com mãos trêmulas, abriu uma agenda onde preservava uma fotografia desta mulher cujo aspecto era deveras gracioso. Na imagem, seus cabelos grisalhos cuidadosamente penteados ornavam o rosto sereno que atentava para uma trama de crochê de belo colorido, talvez menos colorido que fora seu matrimônio...

Tomei a efígie às mãos enquanto o senhor se despedia e seguia seu caminho lentamente...

Cobicei o segredo do que ouvira e compreendi como em poucas vezes a definição de um puro, verdadeiro e incondicional amor; este sentimento que eles esbanjavam em essência e nossa geração aprendeu a diluir.

(Sandra Lima Costa Melo)