A Kombi do meu amigo

Depois de trabalhar por cerca de 20 anos em serviços pesados e insalubres, meu amigo ficou muito doente e foi “encostado” pelo INSS. O salário baixou pra cerca de 1,5 salário mínimo, o que lhe causava muitos transtornos para sustentar esposa e cinco filhos. A esposa começou trabalhar de faxineira e os filhos também se empregaram no comércio da cidade onde moravam.

O amigo, após contestar várias vezes os laudos do INSS, acabou aposentado por invalidez com o mesmo valor que já recebia.

Equilibrou as finanças com a retirada do FGTS, PIS e outros valores retidos com os quais comprou uma Kombi 86 onde instalou uma máquina de moer cana. A Kombi estava sempre impecavelmente limpa e, além de ter se tornado seu instrumento de trabalho, servia para levar a família à igreja nos fins de semana.

Após tentar alguns pontos fixos para comercializar seu produto, decidiu seguir as feiras livres, colocando-se sempre ao lado da barraca de pastéis de um empresário ‘sansei’ que tinha vários pontos de venda da iguaria.

Os anos passaram e o amigo amealhou uma boa freguesia conseguindo uma renda extra de 2,5 salários mínimos; estava satisfeito, a esposa deixou de trabalhar fora e os primeiros filhos se casaram indo cuidar de suas vidas. Com o dinheiro arrecadado mensalmente, fez uma reforma em sua casa simples, comprou uma TV nova e mantinha sua Kombi sempre limpa e com tudo funcionando satisfatoriamente.

O empresário ‘sansei’, que buscava ampliar seus negócios, viu na comercialização do suco da cana de açúcar uma oportunidade de aumentar suas rendas. Não demorou, fez propostas ao amigo para comprar sua Kombi, pagaria 15.000 reais. Meu amigo recusou. O empresário argumentou que aquele dinheiro seria suficiente para comprar “uma geladeira nova, uma TV nova, talvez até uma viagem para o nordeste”, o amigo ficou de pensar.

Meu amigo mal dormiu aquela noite pensando num dinheiro que nunca teve ao mesmo tempo. No dia seguinte, logo ao amanhecer, recebeu uma ligação do empresário. Ele estava disposto a pagar 18.000 reais na Kombi com a moedeira, o tanque de água e os jarros juntos.

Confuso com a investida, o amigo decidiu conversar com a esposa. Ela ficou encantada com os valores, porém, cuidadosa, não se deixou emocionar. Pegou seu caderninho, onde anotava todas as despesas da casa, sua calculadora de quatro operações e foi analisar o que poderiam fazer com aquele montante.

Conta vai, conta vem, ia fazendo caras e bocas ao final de cada soma.

Percebeu que se fossem ao nordeste levando presentes aos poucos parentes que ainda estavam por lá, mais as passagens, alimentação e tudo, gastaria pouco mais da metade do dinheiro. Se comprassem novos eletrodomésticos e fizessem uma nova pintura na casa, gastariam quase tudo e ficariam sem a Kombi e seus equipamentos, além de perder o meio de transporte para a igreja nos fins de semana. Em seguida verificou que se economizassem pouco menos de um terço do que ganhavam, em dois anos teriam o mesmo valor e ainda manteriam sua Kombi equipada para trabalhar e passear. O amigo ansioso esperava a opinião da companheira; ela disse não, “não valeria a pena”.

O empresário recebeu a resposta ainda naquela manhã enquanto o amigo trabalhava ao lado da sua barraca de pastéis, foi um “não” bem explicado com os argumentos da esposa. O empresário coçou a cabeça, deu uma volta na Kombi ouvindo o ruído da moedeira e reparando no jeito simpático com o qual o amigo atendia a clientela, pegou o celular, fez cálculos e sumiu por umas horas.

O amigo já estava guardando seus materiais na “perua” quando o empresário retornou; pagaria 20.000 reais e ainda empregaria meu amigo por 1,5 salários mínimos, mas ele teria que trabalhar na feira de domingo pela manhã, bem no horário que o amigo reservava para estar na ‘escola bíblica dominical’. Desta feita o amigo nem precisou consultar a esposa, disse um sonoro e definitivo não, estava convencido que não havia vantagem pra ele nessa empreita.

De volta pra casa, comentava com a esposa como tinha sido o embate com o empresário enquanto assistiam o jornal na TV, onde especialistas discutiam ‘vantagens’ e ‘desvantagens’ da venda da Petrobras. Ficaram imaginando como poderia ser aquilo. Sua Petrobras era a Kombi.