A complexidade dos sabores

Lá estava eu, na fila da sorveteira aguardando atendimento quando ouvi uma voz rouca, entre risos, afirmar que o tempo havia me feito um "bem danado". Decerto, estaria diante do complexo e pavoroso reencontro de mais de 10 anos, pra ser mais criteriosa, 11 anos, onde a primeira avaliação se dá na estética e, por consequência, os vampiros do passado assombram: autoestima toma café amargo, das duas uma: ou era um monstro e me tornei uma fada, as relações estão rasas, ou por fim, estamos diante da fita métrica da vida com base no espelho interior, mas não percamos tempo com isso, o foco é a sorveteira.

A fila anda... Bem devagar pra ser bem precisa e com ela a conversa rende, poderia dizer, o monólogo se estende:

- Vi que está casada! Loteria fácil essa sua. Há os que se afortunam com essa escolha, o que não ocorreu comigo, é claro. Amor é coisa de novela do SBT, e os que permanecem firmes são vistos como idiotas, assim como os que assistem as novelas mexicanas.

Não sou fã de novelas, mas em tempo de ódio e desrespeito, sequer mencionei qualquer gosto. Vai que a arma está no bolso? Não sabemos o que nos espera... Os intolerantes tem dominado o mundo e porque não as ideias?

- Parei de fazer papel de besta! Sem pretensões futuras. Quero uma vida leve, relações rasas, e curtição.

Lembrei-me da Renata Veloso, expert em investimentos, e já vi uma nuvem pairando sobre a minha cabeça: amor como investimento? Seria renda fixa ou variável. Quando está indo bem eu injeto mais money e quando está em baixa eu negocio? Mas e os lucros garantidos na alta? Era demais para um ser humano que usa a matemática, atualmente, apenas no supermercado, no posto de gasolina, no banco.

- E você? Apaixonada?

Não o vejo há onze anos, meu caro, e a sua primeira pergunta é sobre paixão? Há interesses antagônicos no mundo da Terra Habitada, mas enfim, limitei-me a balançar a cabeça, para alguém que tenha desistido dos sentimentos, expressar os meus pudesse ser visto como ofensa, e nem sei se deveria me preocupar em resumir sentimentos num encontro esporádico, na sorveteira. E por falar em sorveteira, a atendente me aponta com o indicador e dá um sorriso com os olhos:

_ Próxima!

- Serve no quilo? Posso escolher os sabores?

- Sim, fique a vontade.

- Quero chocolate com coco.

- Temos chocolate belga, italiano, amargo, sem lactose, sem gluten, francês, belga, ao leite, os saborizados feito licor, os tipo Kindle ovo, lyndsay... De coco temos o tradicional, em flocos, queimado, caramelizado, com raspas, com casca, imersivo no abacaxi, no maracujá...

Antes mesmo que ela terminasse de apresentar o vasto cardápio, acabei me perdendo quanto ao desejo que tinha, estava ali diante da moça de olhos tristes, com uma bandeja excessivamente recheada de opções e só queria um chocolate com coco. Olhei pra ela, também pro Rodrigo que não parava de falar um minuto nas minhas costas, e pensei: Coisas tão simples se tornaram tão complexas, ao passo que coisas complexas, foram simplificadas. Era tão simples tomar um sorvete e era tão difícil entender de amor. Mas, enfim, pra não travar a fila disse:

- Tem picolé de abacaxi?

- Sim, você mesmo pode pegá-lo na geladeira.

Antes, contudo, olhei para o Rodrigo e numa atitude inexplicável diante de toda a vida que descrevia em alto e bom tom, desde o trabalho até a última viagem, perguntei e você, como se sente, está feliz?

Ele me olhou nos olhos e fez um silêncio. Logo depois, emendou seu roteiro de filme com uma frase surpreendente: felicidade é estado, Mônica! Não sou, estou. Compro o que quero, conheço o mundo e aproveito a vida. Quase nunca volto pra casa. Sou visita no apartamento de 3 quartos, no Belvedere.

Despedi dele e lá no fundo, pensei o quanto deve ser difícil voltar para a solidão que parece escolha, mas é condição. Nem Freud explica. E o picolé que era uma paleta, tinha gosto de tudo, menos de abacaxi. Desisti pela metade.

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 29/10/2021
Reeditado em 25/11/2021
Código do texto: T7374120
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